domingo, 28 de outubro de 2012

Os blogues, segundo Fernando Pessoa

Ah, que inveja que eu tenho do blogue seguinte. Tão cheio de ódio, amor ou raiva. Tão certo do que deve ser, ou cheio de vazio e a suplicar que aconteça algo a seguir.

Como me emociono com a verdade que encontro neste blogue e por uns instantes dou-me ao luxo de esquecer que eu sou o que não está lá, o que não a quer encontrar. Ah, que inveja.

Que inveja que eu tenho do teu corpo, que não é o meu e pressinto nesse blogue, um corpo que insinuas cheio de chuva e flores. Um corpo que eu quero para sentir inveja.

Como invejo as cadeiras do relvas e à socapa me sento numa delas. Respiro fundo e permito-me pensar que este reino é meu, até que o autor vem a correr comigo, dizendo que esta cadeira é do relvas, não é minha, que posso sentir inveja, mas não posso estragar o blogue. Ah, que inveja.

Sinto inveja desse teu pequeno poema que ninguém comenta, por inveja. Imagino essas palavras na minha boca. Palavras que a tão enchem que basta mover as mandíbulas para se propagarem como um post num blogue. Que inveja.

E arrasto a inveja de um blogue para o blogue seguinte. E a inveja vai-se partindo aos bocados. Um pouco fica neste blogue, mas tento guardar algo para poder continuar a caminhada. E é um contrassenso isto que andar com a inveja aos pedaços. Ela quer-se forte, junta, sentida. Ai que inveja.

sábado, 27 de outubro de 2012

Central Tejo

O livro de fotografia Central Tejo - Imagens de um Tempo Ausente de António Paixão, com um voltímetro na capa, um amperímetro na contracapa e o volume de um objeto industrial, contém o resultado de uma veneração intemporal, sem medida.

É uma veneração pelos objetos construídos pelo homem que, desprovidos de função ou na sua ignorância, se tornam objeto de culto. Uma veneração feita das mesmas impressões que terá um humano ao chegar a um planeta alienígena, ainda que cheio de vida e em funcionamento.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

como um ovo

como um ovo
de aspeto sólido
arredondado e liso
facilmente se quebra e escorre entre os dedos

também as palavras fortes
diretas e sem adornos
facilmente se rompem e escorrem
como um ovo

sábado, 22 de setembro de 2012

humildade

um dedo do pé
um dedo do pé afunda-se numa cama
uma cama no meio de um quarto
uma cama no meio de um quarto onde um dedo do pé
um quarto dentro de uma casa
um quarto dentro de uma casa onde uma cama
uma casa num prédio
uma casa num prédio onde num quarto
uma escada rasga um prédio
uma escada rasga um prédio e leva de uma porta a uma casa
uma rua onde uma porta
uma rua onde uma porta se abre para uma escada
um bairro de gente
um bairro de gente onde uma rua
uma cidade cheia
uma cidade cheia de um bairro
um país com mar
um país com mar onde uma cidade tem um nome

um país com mar e uma cidade cheia com nome e um bairro de gente onde uma rua tem uma porta que se abre para uma escada que rasga um prédio e desemboca numa casa onde num quarto sobre uma cama um dedo de pé se afunda com um imenso peso

- Humility - Wim Mertens

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Evondres

Tomar o avião
Primeiro em pequenas doses
Para criar habituação
Depois em cruzeiro
Para cumprir o roteiro

NorthFields
Green Park
Southwark
Bermondsey
Canary Wharf

Wharf, Wharf, Wharf disse Canary
Nestas docas se fizeram navios
That, That, That disse Cher
Deste porto financeiro
Nunca partiremos à deriva

Comer sushi no chão
Também em pequenas doses
Para criar habituação
Aqui entre a terra e o rio
Por vezes sente-se algum frio

Heron Quays
Canary Wharf
West India Quay
Shadwell
Tower Hill

Do tapete rolante
Veem-se as jóias da coroa
Espantadas caras
Passam pelo andor
Num grande fervor

Monument
Cannon Street
Mansion House
Blackfriars
Westminster

Seis mulheres teve o oitavo
E como eram todas giras
Ficou tão de pantanas
Que teve de ir à igreja
Separar-se

E a Zabete?
Num tempo de shake e inspiração
Tinha ciúmes da Maria
Que de uma outra religião
Tinha a cabeça mais bonita

Cortem-lhe a cabeça!
Qual delas Vossa Senhoria?
Aquela que ela ainda agora tinha
Que é dela, com mil raios
Rolou por aí abaixo

Espeta-a num pau
Que é para aprenderem
A pensar com a cabeça
Não vão eles achar que a minha
É como a dela com certeza

Westminster
Embankment
Charing Cross
Trafalgar Square
National Portrait Gallery

Pintou a avó nua
Com tal crueza
E delicadeza
Que está agora na Gallery
Exposta

O Mexicano arde na boca sem dó
Queima que é um disparate
Apaga o fogo com 7up
Ufa, que alívio, agora já rio
Mas ainda tenho os lábios em desvario

Charing Cross
Piccadilly Circus
Leicester Square
Convent Garden
Holborn

1 morto, 2 morto, 3 morto, 4 morto, 5 morto, 6 morto, 7 morto, 8 morto, 9 morto
Diz um morto
Com um ligeiro sotaque egípcio
Would you like a cup of tea?
Very British, indeed

Holborn
Oxford Circus
Green Park
Victoria
St. James Park

Focinho pontiagudo
E cauda comprida
Nas tardes de amendoins
O esquilo vai à mão
Mas a mão não chega ao esquilo

St. James Park
Westminster
Embankment
Temple
Mansion House

Modern art is like

An unfinished sentence
You have to fill the gaps
Tate on you brother

Que saudades
Do Vietnamita
Da beef noodle soup
Mas eu noodle quero
Queres ou não queres?

Mansion House
Embankment
Oxford Circus
Regent's Park
Baker Street

Aqui também há uma Madame
Feita da cera
De todas as formas
Com que eu quero ser fotografada
Será Mrs, Miss ou apenas Ms?

17 de Setembro de 2012

domingo, 2 de setembro de 2012

Dia 15 - The Dead

Abandonámos o local com um cansaço feito de músculos descontraídos. A descida era feita do descair do corpo. Descíamos aos sobressaltos. As distâncias entre nós iam variando, formando-se um corpo desengonçado que parecia descer a montanha aos trambolhões controlados. A cada momento prestes a lançar-se no abismo, a cada momento a se agarrar de novo ao chão.

Observado com mais detalhe, podia-se imaginar neste corpo uma longa coluna de onde se prendiam semi-arcos. Era entre estes semi-arcos que nós nos movíamos e que nos impediam sair de dentro do corpo que configurávamos. Não, de facto, nós eram os semi-arcos e os nossos movimentos marcavam o respirar ofegante de um animal acabado de ressuscitar.

Era a cabeça, feita de um enormes buracos sem olhos, que nos atirava para a frente. As gigantescas mandíbulas, premiadas de uns dentes que já foram úteis, dão ao animal um ar sedento de vida. A cabeça bamboleia-se de um lado para o outro, de cima para baixo, e pelos buracos dos olhos passa tudo o que está à volta. A conjugação dos buracos nos olhos e das mandíbulas abertas dão ao animal uma expressão de incredibilidade.

Eveline caminha com os olhos nos olhos do animal, procurando ver tudo o que ele vê. Há na sua cara uma expressão de contentamento que não lhe tínhamos visto antes. A sua respiração é consonante com a respiração do animal e, caminhando entre nós, é o seu movimento que marca a deslocação lateral daquela desmedida massa. Sempre que chegamos a um ponto, já ela se move na direção oposta, levando-nos atrás.

O caminhar de James é marcado pelo alheamento de Eveline. Inicialmente ainda procura olhar pelos olhos do animal, mas acaba a observar o corpo que nos envolve. É um extraordinário monumento que avança no tempo e onde James tenta encontrar o seu lugar. Vai fazendo isso experimentando diferentes formas de andar. Aquela que lhe parecia mais óbvia era a de Eveline, mas ela, ou o corpo, estão sempre um pouco depois, ou um pouco antes. Enquanto vai procurando acertar, dá então consigo a imaginar como teria sido imponente esse animal, como a sua presença deveria impor respeito e forjar vontades. Mas de tantos desacertos, James começa a ficar para trás. Sente passar-lhe pelas costas um fio frio, como um arrepio. É a longa cauda do animal que passa por ele. Já sem obrigações fica sentado a observar-nos na descida.

Viro-me e pergunto-lhe, Então James, não vens?

- Inspirado em The Dead de James Joyce, num esqueleto de dinossauro no Natural History Museum  e nos monumentos funerários no British Museum em Londres.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

14 dias a caminhar

Estes 14 dias de caminhada, mais ou menos imaginária, foi escrito entre os dias 1 e 16 de Agosto de 2012 ao passo de um conto de Dubliners de James Joyce e de recordações de lugares:

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Dia 14 - base, fuste, capitel,

À nossa frente, as torres de granito saindo de uma luva de neve sem dedos. Finalmente chegámos. Nem queríamos acreditar. Quatorze dias. As torres eram massivas rochas que se estreitavam lado a lado.

Estendemos-nos no chão, cada um para o seu lado. Entre nós um mar de pedras roliças. Virando a cabeça víamos os corpos entrecortados pelas pedras. Eram corpos deformados por inesperadas barrigas.

James via as pedras das torres a entrar pelas nuvens que se desfaziam quando as tocavam. Esticou-se um pouco mais. Os pés calçaram uns sapatos de pedra. As mãos enviaram-se dentro de umas luvas castanhas. A cabeça estava fixa nas torres. Não pestanejava, mas de dentro da sua boca saía um corpo azul, irregular, que ía variando de tonalidade e forma com a luz do sol e a sombra das nuvens. O tamanho do corpo aumentava conforme respirava.

De Eveline não se via a cabeça. No seu lugar um pedregulho, um pouco maior que os restantes. Entre este e as pernas, ausentes pela presença de uma outra pedra, uma barriga onde se notava a respiração. A respiração era irregular e começou a propagar-se ao solo. Primeiro foram as pedras que escondiam Eveline que começaram a tremer, mas depois o tremor começou a propagar-se em círculos concêntricos.

A corpo azul reluzente de James e a respiração de Eveline tomaram conta de todo o local. As pedras começam a rebolar e a saltar. Misturam-se com o corpo azul. O azul tingiu-se de castanhos. Agora a sucessão de tremores já não deixa as pedras regressar ao chão, atirando-as cada vez mais alto. Saltam no topo das torres, como capiteis. No chão, volto a ver os corpos de James e Eveline por inteiro. De onde me encontro, parecem suster as torres.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Dia 13 - Língua

O que se passou no dia de hoje, ou deverei dizer noite, pela presença do fantástico, ou deverei dizer do passado, é bastante irreal. Quando penso neste dia parece-me mais um sonho que uma caminhada. Poderia descrevê-lo como o primeiro, mas vou fazê-lo como a segunda.

O segundo dia a caminhar na trajetória ecliptíca, com o horizonte a prolongar-se, a cada passo, um pouco mais para lá, conjuntamente com a mescla de entusiasmo e cansaço que nos possuía, deve ter criado em nós um torpor gerador de visões. Era dia e, por obra do que James alega ter sido um eclipse, vez-se noite. Já segundo Eveline tudo se deveu a James, no seu deambular, se ter entreposto entre ele e a crista cerrada. Não sou capaz de concordar com um ou discordar do outro, nem de distinguir com clareza o que cada um viu, ou supôs ver, pelo que não me irei preocupar com isso.

Houve sim um momento em que as pedras sobre as quais pensávamos caminhar se revelaram serem pequenos corpos com uma desproporcionada cabeça. Eram graníticos, polidas de lábios grossos e olhos sem fundo. Foi então que deixámos de ouvir os nossos passos e das cabeças saíram sons incompreensíveis. E contudo, aos poucos, conforme continuámos a caminhar, os pés começaram a encontrar sentidos nesses sons.

Depois, reparámos em gigantescas figuras de pedra que marcavam o caminho. Silenciosas, de longos braços, em diferentes posturas, pareciam tocar os sons que dançávamos. Nesse momento, o receio que sentíamos consubstanciou-se nos passos a que começámos a dar nomes. Um, a que chamámos aproximação, era feito de pequenos avanços e recuos, num outro, a que demos o nome de descida, o corpo atirava-se na direção da pendente mas não saía do lugar. No ponto, quedávamos-nos a ver Eveline rodar sobre nós, já na espiral tínhamos que a suster enquanto ela girava.

Suspeitei que estes passos formavam uma língua. A isso não é de todo estranho o ter verificado que cada um dançava os passos de forma diferente. Por exemplo, como era diferente a forma como eu e James executávamos a aproximação. E James era exímo nos labirintos, colocava os pés entre as cabeças no chão e subitamente desaparecia entre as figuras de pedra, reaparecendo depois, mais à frente, ou atrás. Ah... e como era Eveline graciosa em linhas e arcos.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Dia 12 - Trajetória eclíptica

Após termos estado no ponto resolvemos circundar a montanha para alcançar o outro lado, aquele que tínhamos observado. Seguimos assim ao longo da encosta, com a presença constante da inexpugnável crista de pedras do topo.

Os nossos passos, embora aparentemente enérgicos e determinados de chegar, eram marcados por um indisfarçável deambular. Seguíamos em frente com a rapidez de quem está preso por uma corda que nos segura, mas que por vezes fica lassa e nos dá a sensação de caminhar no vazio.

Eveline seguia agora visivelmente à frente. O caminho que percorríamos não estava marcado, guiávamos-nos pela crista, procurando manter a distância relativamente a ela, e pelo horizonte da encosta que encurvava lentamente. Naquele caminho inventado, os pés resvalavam à procura de apoio e tentávamos nos próximos passos restabelecer a distância ao topo.

A conversa entre James e Eveline era entrecortada pelo vacilar da caminhada.

- Quanto faltará...
- Talvez depois daquela rocha já vejamos...
- O outro lado.
- Sim, talvez.
- Fiquei surpreendida...
- Com o quê?
- Com a paisagem do outro lado.
- Sim, também não estava à espera.
- Já se veem os cumes.
- Há um grande desnível até ao desfiladeiro.
- Já dali se consegue ver como são perfeitos.
- Lá a floresta é muito densa.
- Ainda têm alguma neve.
- Seria por não haver sol que o verde era tão escuro...
- É magnífico!
- Sim, é!

domingo, 12 de agosto de 2012

Dia 11 - Ponto

Hoje, após mais um dia a subir, chegámos ao ponto. Não é fácil descrever um ponto. A única forma de o fazer é dizendo como nos aproximámos dele, que forma tomou perante os nossos olhos, e depois, o que vimos e como nos sentimos quando lá estivemos.

Estes dois dias a subir foram dirigidos para esse ponto. A subida foi feita pela encosta nordeste. Embora procurássemos atingir o ponto, fomos-nos entretendo a observar a paisagem lá me baixo. Mas isso também contribuiu para construir uma expetativa de como ela seria o outro lado. O que se veria ao atingir o ponto? E como seria poder rodar a cabeça e trocar os olhos entre as duas paisagens? Como é que essas duas imagens se encontrariam no cérebro, nesse ponto?

A subida não foi fácil e estávamos cansados como finalmente vimos o ponto. A reação imediata foi lançarmos-nos para ele, mas o acesso não era fácil e acabámos a acotovelarmos-nos, sem maldade, sem conseguir avançar. E aquele ponto era o único que nos permitiria ver o lado sudoeste, o restante cume era um escarpado fio de navalha. Mesmo o acesso a uma pessoa só não era fácil, Eveline desequilibrou-se e só não caiu pois James a segurou.

E agora que já lá estivemos, o que se vê naquele ponto, depois da canseira da subida? Há efetivamente duas paisagens que ali se encontram, cortadas por um risco de pedras aguçadas. Mas é impossível descrevê-las com precisão, pois apenas lá esteve um de cada vez, e quem pode assegurar que não fomos traídos por um piscar de olhos ao rodar da cabeça ou devido a um desfasamento entre o ponto no cérebro e o ponto sob os pés. Sim, partilhámos depois essas experiências singulares, mas quem pode assegurar que uma vez de volta não efabulávamos já sobre o ponto.

sábado, 11 de agosto de 2012

Dia 10 - Espiral

O dia foi a subir. Primeiro por uma encosta suave mas assim que nos aproximámos do núcleo central o caminho transformou-se numa íngreme subida a dar voltas em caracol. Estamos constantemente a reencontrarmos-nos, ainda que com um ou dois metros de altura de diferença. Eveline vai no meio e conta como resolveu fazer esta viagem.

- Um dia surgiu uma possibilidade de tirar umas férias de dois meses. Sempre tinha sonhado vir aqui e procurei na internet.
- Encontrei muita informação sobre os percursos, com fotografias e descrições de pessoas que cá vieram.
- Tudo o que vi deixou-me entusiasmada. Falei com uma amiga que já cá tinha estado.
- Ela disse-me que este sítio era maravilhoso, mas que Agosto não seria a melhor época.
- Mas disse-lhe que apenas poderia fazer tirar férias em Agosto.
- Ela disse-me porque não tentava tirar mais tarde.
- Eu disse-lhe que poderia tentar mas que era difícil.
- Ela disse-me para eu falar com o meu chefe.
- Eu disse-lhe que ele não iria autorizar, mas resolvi perguntar à minha mãe.
- A minha mãe ficou surpreendida, mas depois disse também ela teria gostado de fazer este caminho.
- Ah, fiquei tão contente por a minha mãe me dizer isso que no dia seguinte falei logo com o meu chefe.
- Ele apenas ouviu
- Não percebi se estava de acordo ou não, mas é-me sempre difícil perceber o que é que ele está a pensar.
- Disse-me que iria falar com o responsável.
- Nessa noite encontrei um amigo, o Karl, e contei-lhe
- Ficou tão entusiasmado. Disse que deveria ir mesmo.
- No dia seguinte o chefe veio falar comigo e disse que não seria possível por causa dos clientes.
- Fiquei tão revoltada. Ainda no outro dia derem isso ao Tom.
- Queixei-me à minha amiga.
- Ela disse-me que não fazia sentido nenhum.
- Passámos toda a noite a conversar sobre isto.
- Quando cheguei a casa pensei que se pedisse uma licença poderia passar seis meses a viajar por aqui.
- Falei com o meu namorado e disse-lhe que estava a pensar viajar durante seis meses.
- Ele deu-me todo o apoio.
- Perguntei-lhe porque não vinha comigo.
- Ele disse que não podia por causa do cão. Sobretudo agora que o cão estava velho.
- Eu disse-lhe que compreendia.
- Ele disse-me que se eu esperasse que o cão morresse vinha comigo.
- Eu disse-lhe que agora já não dava para esperar.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Dia 9 - James

Ao fundo, a montanha com as nuvens. De onde se encontra traça uma linha reta até ao sopé. Parece-lhe que a caminhada demorará um dia. Nunca aqui tinha estado antes, mas James está habituado a caminhar durante vários dias. Preparou-se com tudo o necessário e a mochila não está pesada.

Após três horas a caminhar faz uma paragem. Olhando para o ponto de partida e para a montanha calcula ter feito metade do caminho. Come qualquer coisa e bebe algum café. Em redor a paisagem não difere da que já percorreu.

Após um pequeno descanso recomeça o caminho. As descidas para os vales são ligeiros sobressaltos de que sai quando chega ao cimo da próxima colina, onde recupera a linha. Vai precisando de fazer poucos acertos a não ser quando inesperadamente à sua frente surge algum curso de água que tenha que circundar.

Uma nuvem começa a deixar cair pingos que obliquamente chocam com ele. A chuva não é muito forte, a não ser pela força com que o vento empurra as gotas. Não lhe parece que seja significante para o desviar do percurso delineado.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Dia 8 - Labirintos

A chegada a este porto criou alguma inquietação em James. Quando o barco atracou não havia ninguém no cais, como se fosse um lugar abandonado. Os passageiros que iam saindo desapareciam por entre as várias ruas que, como portas, se abriam para o cais. A cidade era um ermo corrido pelo vento e as casas feias, de janelas com olheiras e língua de fora, impossibilitavam imaginar qualquer aconchego. Mesmo o sol e a sua luz eram frios e cheios de poeira. Ao errar pelas ruas ia cruzando esquinas e dando com novas fileiras de casas iguais. Quando passou pelo mesmo sítio pela segunda vez entrou por uma porta para não se deixar engolir naquele labirinto.

Uma vez dentro foi avançando, abrindo portas, que lá deverão estar por causa do frio, até que chegou ao fundo de umas escadas. Não se via ninguém dentro da casa. Subiu as escadas e à direita estava uma pequena sala. Tinha um ar acolhedor, duas cadeiras de baloiço, uma mesa e um grosso tapete junto a uma lareira acesa. Deixou-se ficar numa cadeira a apanhar o calor. Com o corpo aconchegado James questionou-se porque não estaria ninguém na casa. Levantou-se e foi ao quarto ao lado que tinha duas camas e uma outra porta. Do lado de lá desta porta havia uma outra sala, parecida com a primeira, com uma escada. Ao fundo da escada estava uma ampla sala. James começou a suspeitar que a casa devia ser enorme.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Dia 7 - Linhas e arcos

Passar um dia a bordo deste cargueiro, ajeitado ao transporte de passageiros, pode tornar-se monótono. Logo cedo, no início do dia, percorro minuciosamente o barco mas percebo que não chegará para o preencher. De seguida, atiro-me à leitura de The Boarding House e, quando termino, receio não vir a encontrar a bordo nada que se relacione com este anúncio feito por uma mãe a um homem de que deverá casar com a sua filha. Para além disso, decido que desta vez não me irei socorrer de James, nem de Eveline.

Que poderá haver de anúncio neste barco? Sei que o capitão fará amanhã de manhã o anúncio da atracagem ao porto de destino. Mas essa é uma chegada anunciada. Peço auxílio a um livro de Madonas do renascimento que começo a folhear. Prende-me a atenção um quadro de Botticelli sobre a anunciação do arcanjo Gabriel a Maria. Maria, extremamente bela, estende a mão na direção da mão de Gabriel. Ambos têm as mãos abertas que não se tocam. O arcanjo Gabriel está de joelhos e podem-se identificar dois retângulos dispostos diagonalmente que marcam a distância entre Maria e Gabriel. Um retângulo é formado pelos braços estendidos e as cabeças, o outro, mais pequeno e dentro do primeiro, pelas mãos de dedos abertos, palma frente a palma. Estes dois retângulos estabelecem uma tensão na distância entre as duas figuras.

Com reduzida esperança de encontrar dentro do barco, neste dia, e no limitado tempo em que cá estou, algo do anúncio que Joyce descreve, também tenho dúvidas de vir a reconhecer alguma forma de anunciação de Botticelli. Não que não possa haver mulheres belas a bordo para representarem o seu papel, sei que o passar do tempo neste lugar fechado se encarregará que isso aconteça. Agora a complexidade, quer da estrutura narrativa de Joyce, quer da significação de Botticelli, serão difíceis de reconstruir nesta amálgama de ferro fumegante e ronronante.

Assim, retorno ao mais simples, às figuras geométricas. Não pretendendo transformar os passageiros, os quais desconheço, em personagens, prefiro ficar pelas figuras geométricas que vão formando, especialmente sempre que se encontrem junto à borda do navio, quando têm a paisagem como fundo e se torna mais fácil geometrizá-los.

Sento-me num banco no convés e observo um casal jovem. Ela forma um arco que alterna entre o concavo e o convexo na direcção dele. Ele, primeiro uma simples linha, vai transformando-se num arco cada vez mais pronunciado na direção dela. Formam por alguns instantes duas circunferências concêntricas e separam-se. Ela já lá não está e a parte superior da linha que o forma começa a girar presa pela ponta ao chão, formando um cone invertido. Aproxima-se uma mulher mais velha. É uma linha grossa e curta. Algumas pessoas que se colocam à frente não me deixam ver mais, mas Joyce também não conta.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Dia 6 - O observador de pássaros

Eveline é de baixa estatura. Os retângulos das escadas são um pouco largos para o comprimentos das pernas. Por isso, ao subir, vai fazendo crescendos com as ancas. Ao fundo das escadas, alguns homens, à espera, seguem o movimento com pequenas elipses dos olhos, mas talvez não com tanta perfeição.

O barco que nos vai levar através destes canais e, ocasionalmente, por mar aberto é um grande paralelepípedo ao qual foi colado um bico. Na cabine, onde vamos passar a noite, atropelam-se quatro camas no acesso a uma pequena janela quadrada por onde ainda se vê o local que agora abandonamos. 

No convés acumulam-se as pessoas em início de viagem. O barco começa a mover-se com o ruído dos motores a rodar no vazio da manobra e os gritos dos marinheiros, larga o cabo, puxa o cabo. O último cabo que segurava o barco é um passageiro aflito correndo sobre a água e saltando para o barco in extremis.

Os passageiros partem com os olhos no local que deixámos como se o barco fosse demasiado exíguo. Mas, aos poucos, conforme a distância aumenta, os olhares começam a desviar-se, primeiro para as margens depois à procura uns dos outros.

De entre os passageiros, há um que perscruta continuamente o horizonte. É franzino de óculos, usa uma barba rala, e encontra-se sempre acompanhado de uns potentes binóculos. É um observador de pássaros. Ficamos a saber que eles abundam nestes canais, razão pela qual aqui veio. E os pássaros vão traçando longínquas linhas no horizonte as quais ganham sentido e relevância nas explicações que vai dando sobre os seus distintos modos de voo e comportamentos. 

É simpático com uns modos delicados, e está sempre disponível a interromper a observação e emprestar os binóculos a quem queira seguir o voo das aves. À sua volta vão-se juntando passageiros, quer porque têm algum interesse por pássaros, quer porque ali está a acontecer algo. Junto a ele estão dois homens mais velhos, de cabelos grisalhos e barba desgrenhada que lhes cobre todo o rosto deixando apenas de fora uns lábios grossos e um minúsculo par de olhos esbugalhados. São muito parecidos, tenho dificuldade em os distinguir, e pelo facto de viajarem conjuntamente com o aparentemente frágil observador de pássaros, ganham uma forma de Dupond e Dupont.

Também Eveline não resiste em ir ver os pássaros. Assim que se aproxima um dos Dupond e Dupont pergunta-lhe, ?De donde eres tu?, ao que imediatamente o outro Dupond e Dupont acrescenta, Where are you from?. Eveline afasta-se sorrindo e dirige-se para a proa. Estamos a entrar em mar aberto. As ondas começam a agigantar-se e o barco vai-se transformando num paralelepípedo oblíquo que se equilibra entre estibordo e bombordo. Olhando para as ondas Eveline continua a sorrir.

domingo, 5 de agosto de 2012

Dia 5 - A descida

De Eveline, a primeira impressão não permaneceu. Enquanto caminhou connosco, no resto do percurso de ontem e durante o dia de hoje, não lhe vislumbrei no rosto cansaço ou hesitação. Antes pelo contrário, havia jovialidade e desenvoltura a andar. De nós era quem mais falava. Não que iniciasse as conversas, mas aos nossos comentários sempre acrescentava algo. Também James começou a conversar mais. Agora deixava-se ficar para trás, tendo perdido alguma daquela determinação cega que no início o guiava.

A estas transformações não será de todo estranho a alteração que ocorreu no caminho. Conforme fomos descendo a montanha começaram a suceder-se os cursos de água, por vezes com pequenas cascatas. Nestas zonas da montanha a água corre célere, mesmo que em pequena quantidade. Também a temperatura foi gradualmente aumentando ao mesmo tempo que a água, levantada pela queda e encurralada nos desfiladeiros, criava um ambiente húmido e cerrado, diferente daquele que tínhamos encontrado no topo.

E depois há um som constante. No cume de uma montanha o som é tão rarefeito como o ar, mas aqui em baixo os sons são levados nas partículas de água. O som da água mistura-se com a voz de Eveline, com o ruído das pedras que resvalam sob as nossas botas e, acima de tudo, com o silêncio todo ouvidos de James. James diz algo e depois cala-se a ouvir Eveline. Mais tarde vim a perceber que o que interessa a James não eram as respostas de Eveline, mas o conjunto de sons no qual a voz de Eveline se inscreve. Eveline deixa-se ir nesse jogo pela satisfação que lhe dá ouvir a sua voz nos ouvidos de James.

A meio da tarde chegamos a uma cascata formada por um retângulo perfeito. É feita de fios de água que caiem sem alvoroço sobre um pequeno lago, como se este tivesse sido desenhado para receber aquela corrente. No cimo do retângulo, um emaranhado de árvores forma uma boca verde de onde jorra a água. Em baixo, uma linha abre-se no lago para deixar gentilmente entrar a água. À volta tudo é verde e, devido ao sombreado do local, predominam os fetos.

Eveline senta-se a olhar para a cascata. O rosto é redondo, com os olhos negros e o nariz curto. As orelhas, pequenas, mal se notam sob um cabelo escuro e corrido. A idade que agora aparenta é o culminar da descida e da cascata. Um pequeno círculo nada em direção ao retângulo. A cabeça é engolida entre a água que lhe cai em cima e a água que se abre para a receber. Já do lado de lá da cortina de água, por entre os fios, está o rosto de Eveline que nos observa.

sábado, 4 de agosto de 2012

Dia 4 - Eveline

Hoje atravessámos uma montanha através do seu cume. O caminho, que inicialmente era largo, estreitou até mal deixar passar uma pessoa. De ambos os lados a encosta era íngreme. A única alternativa era continuar em frente. A encosta Sul era feita de pedras e penhascos que se precipitavam até muito lá abaixo. Já a encosta Sul, embora fosse igualmente abrupta, estava coberta por alguma vegetação que não revelava a natureza do solo.

Caminhávamos rápido quando vislumbramos alguém há nossa frente. Movia-se com alguma hesitação, saracoteando-se entre aqueles dois precipícios. Voltou-se quando nos pressentiu. Era de estatura baixa e tinha qualquer coisa de índio. Possuía uma daquelas belezas que desaparecem repentinamente com a idade. Isso era agora patente no seu rosto que, quando olhava para nós, cambiava entre o jovem e belo e o tosco e cansado. Chamava-se Eveline.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Dia 3 - Glaciar

James não fala muito, mas também ninguém vem aqui para falar.

De manhã faço um pequeno percurso para ver o glaciar. É uma enorme massa de gelo a desabar sobre um pequeno lago. As cores do gelo vão variando com a posição do sol, o passar de uma nuvem e o local de onde observamos. Por isso, quer estejamos parados ou nos movamos, as cores vêm ter connosco escondendo a exata forma do gelo. Mas há ali azuis, muitos azuis, e não é difícil também lá imaginar verdes. E prevalece um efeito de vidro fusco cheio de luz do lado de lá.

No lago flutuam blocos de gelo que se desprenderam e soprados pelo vento se empurram contra a margem. Alguns destes blocos estão esburacados pelo sol formando esculturas flutuantes que se derretem lentamente. Pego num desses blocos e coloco-o sobre um pedra. Alguns fios negros começam a percorrer a pedra, a torneá-la, em direção ao chão. A escultura de gelo vai dando lugar a uma escultura de pedra feita de riscos de água.

Do outro lado está James. É um vulto à beira de um penhasco virado para o glaciar. Deixa-se estar por ali, imóvel. As nuvens que vão passando pelo glaciar também passam por ele. Não parecem ser a sombra e o frio que o movem. Muda de lugar, começa a descer o penhasco, presumo que procura aproximar-se do glaciar. Tem os movimentos determinados que lhe reconheci na subida. Vai passando rapidamente de pedra em pedra, cada vez mais próximo sinto-lhe alguma ansiedade, como se tivesse a chegar tarde. Por cansaço, ou porque já não tem mais pedras à frente, estaca de novo. À sua frente o glaciar é enorme, uma onda de gelo que se me afigura o ir engolir. Uma espessa nuvem passa por aquela parte do glaciar e com a luz que me chega de outros pontos deixo de ver James. Do que ali se passará nada sei, apenas o que li algures.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Dia 2 - Ticket Birds

Nestas caminhadas os encontros sucedem-se e repetem-se. Por vezes rendemo-nos à repetição como a uma inevitabilidade e começamos a caminhar juntos, e separamos-nos quando o vento ou a chuva assim o decidem, ou a seu pretexto. Esta caminhada também não será exceção.

Aqui, no sopé da montanha, o que se nota é a ausência do vento. A montanha está mesmo em frente. Olhar para ela é um longo e pausado sim com a cabeça. Aproveito para respirar profundamente enquanto vou observando os seus recantos e voltas. Há uma sensação de liberdade resultante da alegria da desabituação do olhar.

Não estou sozinho. No acampamento há mais pessoas. Com alguns dos rostos já me cruzei antes, com outros ir-me-ei provavelmente cruzar em breve, outros não voltarei a ver. São rostos sem ruído. Aqui, num local que ainda não se possui, em que cada gesto e cada passo carece de repetição, o ruído é um luxo. Conforme começarmos a andar e formos perdendo este espanto iremos regressando às repetições e aos rituais, mas agora ainda não é assim.

Inicio a caminhada do dia. Saio sozinho em direção a Norte. O trilho está bem marcado, é fácil nos primeiros quilómetros mas depois começa e ficar mais íngreme, sendo necessária a ajuda das mãos. Gosto do escalar de movimentos amplos de braços e pernas, um pouco como subir a árvores. Do cimo de uma pedra fico-me a observar outros que também se esforçam por subir. Alguns sobem determinados, quase sem parar, enquanto noutros o cansaço transforma-se em argumentos. Param para explicar onde agarrar com a mão ou onde colocar o pé e assim a sua subida transforma-se num mapa do caminho. Um dos que sobe determinado é James. Já nos cruzámos antes. Quando chega à pedra em que estou sentado pára e acena. Em poucas palavras acertamos que partilhamos a mesma direção. Levanto-me e recomeçamos a caminhar.

James não fala muito mas tem sentido de humor. Por este caminho ouvem-se pássaros e ele sugere que também nós sejamos pássaros. Digo-lhe que não sei imitar pássaros. Diz não ser um problema e propõe que sejamos ticket birds. Retira os bilhetes de admissão no parque e mostra-me como se podem fazer vibrar entre os dedos. O som propaga-se entre as árvores e os pássaros silenciam-se surpreendidos e ficam à escuta, como talvez tenha acontecido a primeira vez que foi ouvido um homem nestas paragens.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Dia 1 - A aproximação

Ao fundo a montanha, imponente de acordo com as expetativas. Sobre ela umas massivas nuvens, negras e brancas, como uma pasta, prolongam o seu volume. Ainda não a percorri mas já muito sei sobre ela, dos seus vales e cumes, rios e glaciares, e das pedras que lhe dão o nome. É com este conhecimento que decido fazer uma aproximação. A aproximação foi calculada, será um dia de caminhada, cerca de 18 quilómetros até ao sopé.

Nestes primeiros passos há um anunciar da montanha. Dela não tiro os olhos. Do seu tamanho, que deverá ir aumentando conforme me aproximo, ganham forma os próximos 14 dias. Estes dias serão muito semelhantes, sobre as pernas e com a mochila às costas, ora a subir ou a descer, e demarcados pelo ir de um sítio a outro.

Contrariamente às expetativas, após as primeiras horas já não olho a montanha. Vou olhando o caminho e a paisagem que me rodeia. Passo por um pequeno vale pespegado de árvores, esqueléticas de um fogo, rodeadas de viçosos arbustos verdes. É este contraste que me prende a atenção. Começo por me concentrar nas árvores que, negras do fogo e brancas pelo polimento da chuva, são esculturas imponentes deixadas por aqui ficar. Mas a sua imponência está cercada por arbustos que por todo o lado rebentam, desordenados. Entre o silêncio das árvores e a bisbilhotice dos arbustos, é a segunda que agora me chama. Os arbustos falam com pesar das árvores que já foram. São comedidos, não necessitam de terminar as perguntas pois as respostas são logo dadas por ligeiros acenares de folhas. Entretanto, o vento que começa a levantar-se transforma a conversa em sussurros de concordância que percorrem o vale. Já não há perguntas nem respostas, apenas folhas que se agitam na mesma direção. Deixam-se adormecer nesta harmonia. Fico a saber pouco das árvores.

Volto a concentrar-me na montanha que continua lá à frente. O vento que fazia sussurrar as folhas aumenta conforme vou caminhando. Vou-me vergando a esse vento e por vezes tenho que parar para não retroceder. Nestes terrenos enlameados, a lama acumula-se nas botas em diversas camadas que secam rapidamente com o vento antes de se voltarem a encharcar numa poça. Com as pernas curvadas, bamboleio-me ao andar. O peito arqueia para a frente e a mochila fica quase na horizontal sobre as costas. A montanha torna-se invisível quanto mais me empurra para trás.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Um livro e uma montanha

Um dos livros que mais me surpreendeu foi Dubliners de James Joyce. Ao terminar de ler cada conto ficava com a ideia que nada tinha acontecido. Cada história é sobre o que não aconteceu ou sobre o que poderia ter acontecido. Querer-se falar a língua que já não se fala, ser-se o que não se é, amar-se o que não se teve: são histórias de um mundo fora do mundo.

Escrito numa altura de ressurgimento nacionalista na Irlanda, no início do século XX, fez-me lembrar um pouco um Portugal que conheci em pequeno, e que por vezes pressinto que está a querer voltar. Um Portugal que deseja ser o que não é.

Tudo isto porque ao relembrar Dubliners acho que encontrei a leitura para este Verão. Agora só falta escolher a montanha onde fazer a caminhada para o reler.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

balbúrdia

a a a a a aceitação acontecer aconteceu acrescenta ando ao aqui aquilo até aéreos bem bom carro carros cheguei choque coca-cola com com compreensão conseguir contar contente controladores conveniente convidada corrigir de de de de de decente depois depois doce dois dos e e e e e e e e e e e és és encomendados encontrado entra era era essas estou estou eu exames faz fazer fenomenal ferros foi forma gel greve haver horário ida ir já lata livros londres mas mas matrícula meu mim muda muito muito mão na na nada nos não não não não não não o o o ocupado olhando os os outra papel para para para parecia peço pode pois porque posso posso prato preencher que que que que que que resto retroceder saiu sala se será serão significado também te tempo tirada tivéssemos três tu tu tudo um um uma uma uma unhas vai vigiar zero

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Guerra e Mundo Humano

Acabei de reler o 1º volume de Guerra e Paz mais de 30 anos depois de ter lido o livro pela 1ª vez. Esta versão é uma tradução recente de Nina Guerra e Filipe Guerra e tem uma nota sobre o título. De facto, o título original seria Guerra e Sociedade, ou Guerra e Mundo Humano. As palavras do russo para paz e sociedade, ou universo, ou mundo humano, são homófonas e embora no tempo de Tolstoi se escrevessem com grafia diferente isso hoje já não acontece, justificando a tradução por Guerra e Paz que se popularizou no ocidente.

Um outro aspeto curioso foi já não recordar a história, mas ao reler ser bastante mais claro as caraterísticas das personagens. As personagens de Pedro, Vassíli, Bolkônski e outros vieram rapidamente à memória conforme fui lendo.

Apenas isso

- Ouvi dizer que a palavra appenas não tem apenas um p.
- Não, a mim afiançaram-me que apennas terá dois enes.
- Mas é evidente que ao pronunciar se prolonga o é, por exemplo para dar ênfase a que é apeeeenas isso.
- Tenho que vos confessar que todos têm razão, appeeeennas leva dois pês, dois enes e 4 és.
- Quem diria, apenas há dois dias atrás achava que appeeeennas era bem maneirinha e afinal saiu esta monstruosidade.
- E da missa sabes tu apenas a metade inicial, basta appeeennassss perguntar a quem sabe para ficar a perceber todos os ésses que tem no fim.
- Sabes a metade inicial? Estás apenas a te esquecer de todos os às que aaaappeeeennassss tem no princípio.
- Mas afinal o que significa aaaappeeennassss?
- Aaaappeeeennassss isssssso.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

De supetão

De supetão, uma centelha de calor enche-se de suor
De supetão, um rebentar de nêsperas enche-se de sabor
De supetão, um espreguiçar de luz enche-se de dia
De supetão, um despertar de linhas enche-se de formas

domingo, 27 de maio de 2012

Espiar

Escrevi há algum tempo que o caso da maçonaria seria talvez apenas um problema de moscas.

Mas com o que se vai sabendo o problema tem uma grande dimensão. Os espiões fazem relatórios sobre a vida privada de membros proeminentes da economia, o caso Balsemão . O presidente da república queixa-se que foi alvo de escutas telefónicas, o caso Cavaco Silva. Os jornalistas espiam a família real e o chefe de oposição/primeiro ministro, e são próximos ao outro chefe da oposição/primeiro ministro, o caso Rupert Murdoch. Os ministros recebem informação de espiões e fazem chantagem sobre a vida privada de jornalistas, o caso Miguel Relvas e Silva Carvalho, ...

Parece que espiar se tornou numa importante arma do "jogo democrático". Permitirá redefinir estratégias em tempo real e utiliza de forma igual os serviços secretos e as empresas de segurança privadas. Tudo será facilitado por a tecnologia de produção e análise da informação ser cada vez mais ubíqua.

Serão moscas mas o burro vale a pena.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Hi in Vegas

Hi Vegas
I'm in Vegas
I'm at the Harrahs
I'm at the Circus
I'm not downtown

Hi Mom
I'm in Vegas
I've been shopping
Walking stripdown and up
Having a lot of fun

Hi there
Ain't I gorgeous?
I know, I'm just a girl on a card
But if you wish
I can become for real

Hi 500 dollars babe
I'm just a 100 pounds boy
I've left home today
And I can dream
Hi I Hi I Hi I Hi I

Hi Dad
I'm in Vegas
I've been playing blackjack
I put on that poker face you taught me
But there was no girls on the cards

How can I get to power?
Enter at Bally's
Pass through the slot machines
Turn left where the blackjack tables are
Do a walkthrough charming Paris
Get out at the Arc de Triomphe
Turn right to the Eiffel Tower
And you'll see Cesars Palace
And then Trump Tower
The power back and forth
Back and forth

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Linha Vermelha

O filme Linha Vermelha de José Filipe Costa é um filme honesto, não porque o Cinema seja necessariamente honesto, mas porque o realizador o é. É um documentário sobre o filme Torre Bela de Thomas Harlan, que relata a ocupação de uma herdade no Ribatejo em 1975. O documentário mostra como a presença da câmara de filmar desencadeia acontecimentos e como Thomas Harlan a usa para manipular a realidade. Ainda assim, como a manipulação necessita de se alimentar da realidade para ser verosímil e a passagem do tempo torna a manipulação quase anedótica, fica muito para ver.

Vê-se o dono da herdade no seu palácio (era assim que os trabalhadores viam a casa da herdade) dizer, com um Francês distinto, não saber de onde vinham os trabalhadores da herdade. Veem-se os trabalhadores, com um ar infantil a olhar boquiabertos para o palácio. Era este o Portugal de antes do 25 de Abril. Linha vermelha segue o percurso dos ocupantes até aos dias de hoje e percebe-se que já não olham boquiabertos para o palácio. Contudo não segue o percurso do dono da herdade pelo que ficamos sem saber se o resultado de perder o seu palácio foi ter-se fechado noutros palácios, mais ou menos virtuais, limitado a saber do que ocorre lá fora através da mediação de Rasputines.

Na França, em 1789, quem tinha o poder vivia fechado num palácio chamado Versailles e tinha pouca consciência do que acontecia na sua herdade chamada França. Foi preciso uma revolução para deixar de haver um Rei da França e passar a haver um Rei dos Franceses. Contudo, não deixa de ser curioso que a verdadeira revolução aconteceu alguns milhares de quilómetros para oeste, com a independência dos Estados Unidos.

Neste momento de crise começam a resurgir os desígnios que ultrapassam a dimensão das pessoas. É Portugal, é a Nação, e deixa de ser os Portugueses. O sacrifício das pessoas é pedido a bem destes desígnios pintados de abstrato. Contudo a História ensina-nos que eles nunca têm nada de abstrato e são de fato os desígnios de alguns.

sábado, 21 de abril de 2012

Um gato

Era uma vez um gato gordo e fofo que fazia cocó na banheira e uma menina que gostava muito do gato porque uma menina é uma menina e um gato é um gato.

terça-feira, 17 de abril de 2012

sábado, 7 de abril de 2012

Do Poder e dos Afetos (snipers)

As três primeiras intervenções são certeiras e claramente dirigidas umas às outras. Antevê-se o despertar de paixões, uma guerra. E se os primeiros tiros forem apenas uma encenação?

Numa trama digna de Agatha Christie dir-se-ia que objetivo das primeiras intervenções é apenas o despertar de emoções. Mas não é necessário ir a Agatha Christie, a história das guerras civis está cheia de aprendizes de feiticeiro, que começam fascinados consigo próprios e acabam num emaranhado de feitiços.

Depois vem o nojo, o silêncio, o esquecimento, e então surge um novo aprendiz que pensa que desta vez é que é.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Kizomba

Gosto de Kizomba.
Gosto de dançar com horizontes cheios de embondeiros que não há maneira de parirem.
Gosto de dançar com horizontes que não param de parir mais e mais embondeiros.
Gosto de dançar com canções prenhes de palavras que não entendo.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Do Poder e dos Afetos (2)

MACBETH
We will proceed no further in this business:
He hath honour'd me of late; and I have bought
Golden opinions from all sorts of people,
Which would be worn now in their newest gloss,
Not cast aside so soon.

LADY MACBETH
Was the hope drunk
Wherein you dress'd yourself? hath it slept since?
And wakes it now, to look so green and pale
At what it did so freely? From this time
Such I account thy love. Art thou afeard
To be the same in thine own act and valour
As thou art in desire? Wouldst thou have that
Which thou esteem'st the ornament of life,
And live a coward in thine own esteem,
Letting 'I dare not' wait upon 'I would,'
Like the poor cat i' the adage?

MACBETH
Prithee, peace:
I dare do all that may become a man;
Who dares do more is none.

LADY MACBETH
What beast was't, then,
That made you break this enterprise to me?
When you durst do it, then you were a man;
And, to be more than what you were, you would
Be so much more the man. Nor time nor place
Did then adhere, and yet you would make both:
They have made themselves, and that their fitness now
Does unmake you. I have given suck, and know
How tender 'tis to love the babe that milks me:
I would, while it was smiling in my face,
Have pluck'd my nipple from his boneless gums,
And dash'd the brains out, had I so sworn as you
Have done to this.

MACBETH
If we should fail?

LADY MACBETH
We fail!
But screw your courage to the sticking-place,
And we'll not fail.

- Macbeth, William Shakespeare

sábado, 31 de março de 2012

Do Poder e dos Afetos

Bonaparte: Now some people say he's gotten a little too big for his spats. But I say, he's a man who'll go far. Some people say he's gone too far. But I say, you can't keep a good man down. Of course he's still got a lot to learn. That big noise he made on St. Valentines Day - that wasn't very good for public relation. You let them two witnesses get away. That sure was careless.

Spats: Don't worry about those two guys. They're as good as dead. I almost caught up with them today.

Bonaparte (flabbergasted): You mean you let 'em get away twice? Some people would say that's real sloppy. But I say, to err is human, to forgive divine. And just to show you what l think of you, Spats, the boys told me you was gonna have a birthday. So we baked you a little cake.

Spats: My birthday? Why, it ain't for another four months.

Bonaparte: So we're a little early. What's a few months between friends?

Some Like It Hot, Billy Wilder

domingo, 4 de março de 2012

Pessoas, boas más assim assim

Esta semana por várias vezes ouvi argumentações acerca da maioria das pessoas ser honesta e trabalhadora. Claro, que quem assim argumenta está também a referir-se àquela minoria que não o é. Esta é a velha questão das pessoas boas e das pessoas más. O problema não é novo.

Antes da libertação, os campos de concentração nazis, como Auschwitz, tinham um conjunto de pessoas boas e trabalhadoras que estavam, de forma sistemática, a exterminar pessoas que em vez de trabalhar eram avarentas e se dedicavam à usura. Não era por acaso que nos campos havia inscrições a dizer que o trabalho educa.

Claro que no dia da libertação os papéis se inverteram e subitamente as pessoas boas já não tinham mulheres e filhos à sua espera em casa, mas eram completamente desumanas.

A experiência de Milgrim procurou perceber como é que este tipo de situações pode acontecer, dado que a maior parte das pessoas é honesta e trabalhadora. De acordo com os resultados da experiência cerca de 65% das pessoas é obediente e segue as ordens da autoridade até ao fim. Ou seja, os guardas de Auschwitz poderiam ter sido cidadãos honestos e trabalhadores do Connecticut.

A experiência não dá nenhuma caracterização dos 35% de pessoas que se recusou a submeter outras pessoas a choques elétricos que os poderiam levar à morte. Mas parecem ser pessoas que têm tendência para desobedecer a ordens, para não fazerem o que lhes compete.

Aqui levanta-se-me uma questão. Então são estas pessoas que não obedecem a ordens, que não fazem o que devem, que são boas? Mas Portugal precisa dos outros e esses são maus!

Estarei confuso? Assim assim,

quinta-feira, 1 de março de 2012

Anda para aí uma gripe

Entrou, instalou-se no corpo, e quase me convenço a deixá-la ficar. Há qualquer coisa de agradável no torpor do estado febril e no esticar das pernas doridas. Mas resisto e corro com ela à força de paracetamol.

Sinto qualquer coisa no corpo e dizem-me que anda para aí uma gripe, mas pressinto que é ela de novo, talvez travestida com uma nova aparência, ardilosamente construída com as suas memórias da visita anterior.

E se fui eu que me instalei neste corpo, e estou apenas a presenciar um primordial encontro.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Douradas

Sobre o gelo, a olhar uma para a outra, duas douradas. Detenho-me a comparar a luz nos olhos, o corte das bocas, a dimensão das guelras, o brilho das escamas e o contraste nos padrões. Procuro perceber no que difere uma dourada de alto mar de uma dourada de aquacultura, mas apercebo-me que estou a ser preguiçoso autocentrado e urge-me ser descomplexado competitivo. Assim, desvio o pensamento mas sucumbo, e perante os olhos surgem-me dois gestores, frente a frente, Passos Coelho e Steve Jobs.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Neutralidade

Perguntam-me se é possível ser-se neutral. Respondo que deve ser possível, mas provavelmente tem um preço.

Por vezes o preço é alto, e como tal impossível de pagar. À criança Vito Corleone, no início do Padrinho Parte II, não é dada oportunidade de ser neutral. A guerra civil Espanhola está cheia de histórias dessas.

Já nas situações menos extremas o preço da neutralidade é, apenas, não participar no banquete dos vitoriosos. Mas por outro lado não se corre o perigo de ter a sorte dos derrotados. Ou seja, se não nos importarmos de não estar na primeira fila da divisão dos recursos, então é possível ser-se neutral.

Na actual sociedade Portuguesa pode começar a ser cada vez mais difícil ficar neutral (A Construção da Máfia Portuguesa I , A Construção da Máfia Portuguesa II), porque os recursos escasseiam e a sorte dos neutrais não diferirá da dos derrotados.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Borges e os Outros

Nos anos 40, a oposição às políticas de Péron valeu a Borges a demissão de bibliotecário municipal e a oferta de um lugar de inspector de aves. O ultraje, de que se alimentam os poderosos, conjuntamente com a prisão da mãe e da irmã, marcou Borges. Enquanto presidente da sociedade de escritores argentinos (SADE) foi sentindo o isolamento e a solidão daqueles que se opõem a ditadores demagogos, como era o caso de Péron. (1)

Nos anos 70, Borges apoiou os golpes estado de Videla e Pinochet. De Pinochet disse que era bondoso (2). Do então presidente da sociedade dos escritores argentinos disse que não representava ninguém, quando este indagava Videla sobre o destino de escritores desaparecidos, alguns deles provavelmente lançados vivos, de avião, sobre o mar da prata. (3)

O apoio a Videla e Pinochet estava enraizado na repulsa a Péron que tinha regressado em 1973 à presidência da Argentina por via democrática.

Talvez a humilhação sofrida fosse como um daqueles punhais que, segundo Borges, o das mitologias dos subúrbios, cumprem o seu destino de morte para além da vontade dos homens que os empunham.

Talvez, ainda segundo Borges, o dos jogos com o tempo e o infinito, antes ou depois de morrer, se tenha encontrado perante Deus e lhe tenha perguntado quem era, ao que Deus lhe terá respondido, meu Borges, tal como te sonhaste ninguém também eu te sonhei homem. (4)

(1) Peron's government had seized control of the Argentine mass media and regarded SADE with indifference. Borges later recalled, however, "Many distinguished men of letters did not dare set foot inside its doors." - Wikipedia, Jorge Luis Borges, Political Opinions.

(2) El día en que Borges perdió el Premio Nobel - Carlos Maldonado R.

(3) Borges on the Right - Katherine Singer Kovacs

(4) La historia agrega que, antes o después de morir, se supo frente a Dios y le dijo: Yo, que tantos hombres he sido en vano, quiero ser uno y yo. La voz de Dios le contestó desde un torbellino: Yo tampoco soy; yo soñé el mundo como tú soñaste tu obra, mi Shakespeare, y entre las formas de mi sueño estás tú, que como yo eres mucho y nadie. - Jorge Luis Borges (Everything and Nothing)

sábado, 21 de janeiro de 2012

Um poço sem fundo (2)

Borges y Yo


Al otro, a Borges, es a quien le ocurren las cosas. Yo camino por Buenos Aires y me demoro, acaso ya mecánicamente, para mirar el arco de un zaguán y la puerta cancel; de Borges tengo noticias por el correo y veo su nombre en una terna de profesores o en un diccionario biográfico. Me gustan los relojes de arena, los mapas, la tipografía del siglo XVII, las etimologías, el sabor del café y la prosa de Stevenson; el otro comparte esas preferencias, pero de un modo vanidoso que las convierte en atributos de un actor. Sería exagerado afirmar que nuestra relación es hostil; yo vivo, yo me dejo vivir para que Borges pueda tramar su literatura y esa literatura me justifica. Nada me cuesta confesar que ha logrado ciertas páginas válidas, pero esas páginas no me pueden salvar, quizá porque lo bueno ya no es de nadie, ni siquiera del otro, sino del lenguaje o la tradición. Por lo demás, yo estoy destinado a perderme, definitivamente, y sólo algún instante de mí podrá sobrevivir en el otro. Poco a poco voy cediéndole todo, aunque me consta su perversa costumbre de falsear y magnificar. Spinoza entendió que todas las cosas quieren perseverar en su ser; la piedra eternamente quiere ser piedra y el tigre un tigre. Yo he de quedar en Borges, no en mí (si es que alguien soy), pero me reconozco menos en sus libros que en muchos otros o que en el laborioso rasgueo de una guitarra. Hace años yo traté de librarme de él y pasé de las mitologías del arrabal a los juegos con el tiempo y con lo infinito, pero esos juegos son de Borges ahora y tendré que idear otras cosas. Así mi vida es una fuga y todo lo pierdo y todo es del olvido, o del otro.
No sé cuál de los dos escribe esta página.

- Jorge Luis Borges

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

As moscas

Confesso que começo a ter pena do pessoal da maçonaria, de tanta pancada que têm levado. Ainda por cima, apanhados em contramão no PSD.

De tudo isto ocorre-me uma questão. Pelo que leio percebo que vale a pena pertencer à maçonaria, parece que se conseguem uns benefícios, mas não leio em lado nenhum quais são os mecanismos usados para obter essas benesses.

Assim, começo a recordar as velhas Farpas de Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz e pergunto-me se isto não será só um problema de moscas.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Um poço sem fundo

Por vezes questiono-me sobre se o ser é dizível ou indizível. A possibilidade de possuir um objecto por o dizer é bastante antiga e deve ter começado por ser um acto de magia. A representação de animais e peixes nas pinturas rupestres simbolizavam a capacidade de possuir a coisa em si e, consequentemente, de a matar.

Talvez para proteger a vida humana, e dado que a proibição de um ser humano matar outro ser humano é das mais antigas, foi desenvolvido este princípio de que o ser é indizível. Ele encontra-se nas religiões, em que o ser é referido como alma, em algumas manifestações artísticas, na sua procura do silêncio, ou até, de uma forma mais racional, na declaração universal dos direitos do homem, no respeito por todas as diferenças e portanto na impossibilidade de as reduzir a uma mera representação.

Mas será o ser mesmo indizível? Por exemplo, se observar continuamente uma pessoa, em todos os seus actos serei capaz de a possuir, de a tornar finita?

No filme Blade Runner há um diálogo que ilustra bem essa fronteira entre o ser e o não ser, entre o dizível e o indizível, entre Rachel, uma replicante, e Deckard, um blade runner (caçador de replicantes).

Rachael:    You think I'm a replicant, don't you?
Deckard:    Hah.
Rachael:    Look, it's me with my mother.
Deckard:    Yeah. -- Remember when you were six? You and your brother snuck into an empty building through a basement window. You were gonna play doctor. He showed you his, but when it got to be your turn you chickened and ran. Remember that? You ever tell anybody that? Your mother, Tyrell, anybody huh? You remember the spider that lived in a bush outside your window? Orange body, green legs. Watched her build a web all summer. Then one day there was a big egg in it. The egg hatched--
Rachael:    The egg hatched...
Deckard:    And?
Rachael:    And a hundred baby spiders came out. And they ate her.
Deckard:    Implants! Those aren't your memories. They're somebody else's. They're Tyrell's niece's


Mas Philip K. Dick torna os replicantes indizíveis quando coloca Roy, um outro replicante, a poupar a vida de Deckard e a morrer em paz.

Roy:    I've seen things you people wouldn't believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the darkness at Tanhauser Gate. All those moments will be lost in time like tears in rain. Time to die.

Os regimes autoritários sempre tiveram a tentação de tornar o ser dizível. Vejam-se as confissões, quase sempre obtidas através da tortura, durante a Inquisição ou nas purgas Estalinistas. Uma vez reduzido o ser à sua confissão, matá-lo, terminar com o seu corpo, era já apenas um pormenor.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Choque de culturas

Numa reunião em que participei recentemente discutia-se esta tendência, de país do sul, de sermos condescendentes com os nossos. Argumentava-se que noutros países, do norte, não era assim, que cada pessoa tinha mais consciência e capacidade de avaliar objectivamente.

Ironicamente, a solução sugerida, era criar um órgão de pessoas competentes e idóneas que pudesse controlar estas situações.

Digo ironicamente, pois não é a primeira vez que observo pessoas com experiência de países do norte invocarem essa experiência para identificar problemas típicos de países do sul e, para de seguida, proporem também típicas soluções do sul.

Com a inevitabilidade cultural chega-se a uma encruzilhada, e segue-se o liberalismo cosmético.

Será razão para desistir? De facto já ocorreram profundas mudanças culturais nas sociedades. Como é que isso aconteceu? Como foi nos países da Reforma de Lutero?

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

A luz ao fundo do túnel

Blade Runner é um filme de culto, com o seu ser ou não ser segundo Philip K. Dick e as ambiências de Ridley Scott cheias de bazares de lojas de orientais.

Na televisão perguntaram a uma transeunte como tinham sido as suas compras de Natal. Responde que com a crise comprou tudo nos chineses.

A resposta é curiosa pois, por um lado, não contém muita informação, o que se compra no ocidente é na sua maior parte produzido na China, mas por outro lado, dá a entender que comprou produtos baratos, concebidos e produzidos na China.

Ou seja, um ocidente mais pobre tenderá a comprar menos produtos concebidos no ocidente e produzidos na China e passará a comprar mais produtos concebidos e produzidos na China. Perdem-se assim algumas mais valias da globalização, ainda que as mesmas, como estamos agora a constatar, não cheguem para contrabalançar o défice.

Será que ao fundo do túnel há uma loja dos chineses?

E encontraremos lá um ocidente a questionar-se sobre quem é, perseguindo um oriente que dizem não ser, mas que se calhar é?

You think I'm a replicant, don't you?

Okay, bad joke. I made a bad joke. You're not a replicant.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Santo Friedman não faz milagres

A China está a planear colocar um homem na lua e está a desenvolver um sistema de GPS que permitirá localizar com precisão os submarinos dos EUA, o que alguns já referem como uma ameaça à segurança. A China, sem pressas, mas de forma consistente, vai desenvolvendo os seus programas espaciais. 

Entretanto nos EUA os programas da NASA são desmantelados, devido ao corte nos gastos públicos e a ser mais barato alugar os foguetes Russos.

Parecem jogadas de um jogo de estratégia, daqueles que se joga num tabuleiro.

Santo Friedman não faz milagres na China.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Um gigantesco corpo sem consciência

A relativa passividade com que os Judeus aceitaram ser encaminhados para os campos de concentração é de algum modo surpreendente. A forma como viviam na exclusão, a aceitavam e dela tiravam partido, estava enraizada na sua cultura e tinha sido a chave da sobrevivência ao longo de séculos. Por ventura, pensaram que mais uma vez essa seria a fórmula da sobrevivência.

O conjunto de valores culturais que permitiram aos Vikings criar uma comunidade significativa na Gronelândia foi uma das razões por que pereceram quando as condições iniciais se alteraram.

A forma como um punhado de Ingleses dominou e geriu um continente como a Índia também é surpreendente.

Estudos sobre as redes sociais mostram que elas possuem uma estrutura nas quais a velocidade de transmissão da informação é instantânea. Curiosamente essa qualidade também pode levar ao seu colapso, sempre que os canais de comunicação transmitam/dupliquem informação desadequada à razão de ser da rede social.

Hoje em dia os mercados vivem da, e  reagem à, informação em tempo real. Será um gigantesco corpo sem consciência?