domingo, 23 de agosto de 2015

Quadragésimo primeiro dia

Tendo-nos apercebido ao quadragésimo dia que o calendário do ano da areia é pura imaginação, o quadragésimo primeiro dia é feito da mais completa liberdade. Tudo é possível, mesmo o que nunca antes foi pensado, dentro do calendário.

Cada novo dia expande o calendário com as suas conjeturas. Cada pensamento, cada opinião, alonga o calendário mas não nos faz sair dele. Um idealismo subordinado à matéria.

sábado, 22 de agosto de 2015

Taurus

A raiva com que arremetia tolhia-lhe a vista e contudo cada investida trazia-lhe um sabor a vitória.

Tudo começou com sussurros. Pequenas vozes insinuaram-se. Cada uma contava apenas uma pequena parte, um pormenor. Coube a Manuel juntá-las, construir o todo, descobrir a verdade. Quando a descobriu soube-a sua, ninguém lhe a tinha contado. Nessa certeza cresceu, fortaleceu o corpo e se preparou para a lide.

Sabia que iria acontecer apenas uma vez. Por isso tinha estudado o combate ao pormenor. Não apenas este combate, todos os combates possíveis. Todas as combinações de investidas e de como aparar os golpes. Mas nesta preparação algo prevalecia, algo visceral, inicial, a origem daquela raiva. Isso não tinha combinações, era como era, estaria lá no momento em que entrasse na arena, seria levada consigo, para não se enganar, para não dar azo a erros, a mal entendidos. Por vezes já dava consigo a sonhar no prazer único do combate.

Quando finalmente chegou a altura, e entrou com aquele misto de raiva e alegria, Manuel já tinha sido lidado.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Turdus merula

Aquele palhaço sempre a gargalhar, uma fonte de desordem, um empata gente séria. Era assim que se referiam a Lúcio.

Na aldeia havia gente séria, gente com dons divinatórios. Anteviam coisas que as pessoas percebiam. Por isso recorriam a eles. As respostas tinham mais solenidade do que as perguntas. As perguntas eram sobre a vida. Quando me vou casar? O meu marido vai deixar a Bezerrinha? Irei herdar o lameiro? As respostas apontavam para mais além, punham condições, obstáculos a ultrapassar, mezinhas para fazer bem feitas. E as pessoas lá regressavam a casa, com os seus temores confirmados, mas com uma adquirida grandeza e um caminho para percorrer.

Quando confrontado com estas grandezas, Lúcio gargalhava. Olhavam para ele, que não fosse palhaço. Mas ele dizia:

— Vão pequeninos e regressam grandes na mesma.

E depois gargalhava de novo. Por isso não o levavam a sério. A segunda gargalhada era idêntica à primeira, como se não tivesse dito nada.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Canis lupus familiaris

Era nos olhos que mais se sentia o António. Grandes, firmes e prestáveis, presidiam a uma cara que apenas existia para eles. Todos diziam, lá está o António com aquele olhar. Quando torcia os cantos da boca, ou enrugava a testa, os olhos permaneciam inalterados como um bric-a-brac de bijuterias adornado por uma jóia.

Em tudo o resto era simples o António. Muito amigo de seus amigos, nas coisas que a eles diziam respeito colocava um empenho pelo qual era admirado e estimado. Eram amigos de longa data, reuniam-se com regularidade disciplinada, duas vezes por ano. Os encontros eram um reviver transmutado em abraços e palmadas nas costas. Esses afetos, ainda que empolados pela lupa do tempo, traziam-lhe uma tranquilidade, a que se encostava com a satisfação afável de quem espera por mais. E as partidas eram como as chegadas.

Foi percorrendo as coisas da vida como deve ser. António teve mulheres e filhos. A primeira deu-lhe dois. Da segunda teve mais um, como confirmação. Cumpriu as sua obrigações, fez o que tinha de fazer e não se intrometeu no que não lhe dizia respeito. Aos filhos, depois de criados, deixou-os partir com naturalidade, sem sinal de resignação.

Era da caça que ele mais gostava. Uma coisa de família. Lembrava-se do avô e do pai regressarem com as perdizes penduradas do cinto e as caçadeiras abertas. É a do pai que ainda usa. É pela sua mira que as vê passar depois de soltar o cão. Dois gatilhos. Pum, e às vezes cai uma, pum, para confirmar. Abre sempre a arma, para ver saltar os cartuxos, antes de tirar o animal da boca do cão, com o cheiro da pólvora, o sangue da perdiz e a baba alegre.

Agora está aqui encostado a esta árvore a ver o tempo passar. Parece-lhe que passa muito lentamente, e cada vez mais lentamente. Enquanto vai fechando os olhos, a planície vai-se prolongando e as árvores sobrepondo-se. E contudo, o espaço entre elas continua a aumentar. Árvores mais esparsas, planície mais longe. Sente na boca um travo a vinho. Abre as mãos para o cão lamber.

In da Memória da Areia dos Bichos

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Corvus

Vicente, de seu nome completo Vicente António Baltazar de Carolina e David Eduardo Feliciano da Glória e Horácio Inácio Joaquim de Lúcio Manuel de Nicolau dos Nicolaus, mais conhecido por Vicente dos Nicolaus, nasceu insubmisso por natureza.

Tão negro de pele como obstinado de carácter, Vicente é daqueles para quem estar aqui é um direito. Bem lhe referem o que deve, mas ele persiste em ignorar. Acusam-no, com alguma razão, dada a miscelânea do seu nome, de que apenas pode ser fruto de uma monstruosa fornicação. Produto de um daqueles bacanais a que os Deuses do Olimpo se entregam por escárnio dos humanos, imitando-os para melhor os vilipendiarem. Durante essas orgias travestem-se com os nomes que os humanos escolhem e misturam-se em grande algazarra engendrando um novo nome. Repousados da festa, inventam um corpo e um humor, tão ridículos como o nome e insignificantes como os humanos. Juntos os três, atiram-nos para o mundo como um a feto abandonado.

Vicente teria sido o nome a que chegaram. Quanto ao corpo e ao humor, perfeitos Deuses são incapazes de conceber o absolutamente imperfeito. Juntando o pouco que tinha, no frio do abandono e na exposição ao sol teria desenvolvido a obstinação e a insubmissão que eram só suas. Mas isso não era tudo, na sua cabeça conviviam um diligente António com um irreverente Lúcio, havia um Joaquim Baltazar que vivia entre um mundo perfeito e a realidade da sua ausência, para já não falar de um David Feliciano, obcecado com poderes tão dissemelhantes, ou da encruzilhada de uma Glória Carolina. Dentro da sua cabeça todos esses Nicolaus coabitam.

Vendo tamanho tumulto numa obra que achavam sua, e enojados com a promiscuidade daí resultante, os Deuses quiseram impor ordem, mas perante a insubmissão de Vicente e o perigo de perderem a sua representação nos humanos, optaram, por impotência, a condená-lo a ser bicho, um e muitos.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Trigésimo nono dia

Há portanto na observação dos bichos todo um universo que, à falta de outro, usa o universo para o justificar. Por alguma razão estão os Deuses nos céus e os bichos foram feitos à sua imagem. Não admira que a astrologia contenha em si uma certa adivinhação da astronomia.

Prosaico trigésimo nono dia.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Floresta

Os da nossa espécie temos o dom da ubiquidade pelo que não distinguimos estar de viajar, mas existem outras espécies que não são assim.

Tinha adquirido o hábito de viajar num lugar chamado Floresta, num momento a que chamavam sábado. Era um lugar rodeado de outros lugares, girando todos em volta de uma estrela, ao mesmo tempo que rodavam sobre si mesmos. Esta circunstância, à qual não conseguiam escapar, delineou o seu destino, que por isso está fechado em repetições e simetrias. Dos vários seres que o habitam, há uns, um pouco desmesurados, que me intrigaram. E não é completamente rigoroso dizer que sejam uns, pois diziam-se dois ou muitos, mais pela simetria a que estavam condenados do que por vontade própria. Para se distinguirem davam-se nomes, por exemplo, os seres dividiam-se em dois tipos, os homens e as mulheres. A obsessão de dar nomes e, com as viagens comecei a perceber, de se diferenciarem, era espantosamente incessante num lugar onde tudo se repetia.

Para vos poder descrever este lugar tenho que tomar uma das suas formas, pois só ganhando um nome e um corpo podemos perceber o que aí acontece. Tomei a forma de um ser do tipo homem, jovem, de óculos, falhas nos dentes e com algumas borbulhas na cara. Sim, sei que estou a usar nomes que desconheceis, mas não será a leitura do que escrevo que vos permitirá compreender esse lugar, todavia tenho esperança que quando lá viajardes vos recordareis do que aqui fica escrito e então percebereis.

Sob a forma deste ser viajava na Floresta aos sábados numa altura em que os homens e mulheres, homens a maior parte deles, se reuniam para aquilo a que chamavam almoçar. Um ritual que consistia em incorporarem outros seres dentro de si. Era um ritual de satisfação, uma satisfação que aumentava à medida que iam integrando mais seres.

O empregado, é assim que se chama aquele que traz os seres para serem ingeridos, faz rápidas corridas entre as mesas e uma pequena portinhola para onde grita e de onde sai a comida. Seres coloridos, quentes e fumegantes, despedaçados e prontos a serem deglutidos, rapidamente pelos que estão sós, com vagareza pelos que estão acompanhados.

Ao longo das visitas fui conhecendo os que repetidamente vão ao sábado almoçar à Floresta. Existe um homem pequeno e agitado que gesticula e fala muito, o que leva os restantes a também gesticularem e rirem todos juntos. Não percebo bem o que diz, mas como neste lugar tudo se repete, também eu me rio.

Depois há aquele casal, um homem e uma mulher, que entram e se sentam numa mesa ao centro, à volta do qual vão girando os outros homens, conversando com o homem e lançando olhares fugazes à mulher. Há também nela satisfação, finge que os ignora e segura-se no homem como este lugar se segura na estrela sobre a qual gira.

Aos poucos também vou participando no ritual, tendo inclusive começado a me deixar enredar naquela satisfação, talvez por me parecer uma forma primitiva, ainda que grosseira, de ubiquidade. Ao mesmo tempo que me deixo envolver vou procurando na escrita deste lugar algo que o justifique. Encontro uma frase de alguém com o nome de Marguerite Duras, o vinho existe porque Deus não existe. Percebo que o vinho que existe é o que está dentro daquela garrafa para que apontei da primeira vez. Nessa altura o empregado olhou para mim surpreendido, mas agora, mal me sento, logo me a traz com um piscar de olho. Sinto agora alguma curiosidade de saber o que é o Deus que não existe.

domingo, 16 de agosto de 2015

Cicadidae

Será que o destino de uma vida é acabar dentro destas masmorras?

Era uma decisão do Imperador, que aceitava, mas não era isso que intrigava Horácio. A questão era saber se acabar aqui, no escuro, imobilizado e tolhido de frio, não era a negação do resto, do que tinha passado lá fora, antes de aqui chegar.

Sem dúvida que se elevaram vozes para o condenar pela vida que teve, seja pela preguiça, o otimismo ou a cegueira. Vozes que repetiam que este frio era o castigo anunciado. Vozes esganiçadas pela certeza que se Horácio soubesse, Horácio não teria sido Horácio.

Mas seria o castigo uma forma de expressar o tempo, de transformar numa memória dolorosa a alegria das tardes a estalar de som ao sol? Não seria o castigo fazer letra morta dos cantos em que gerações de Horácios simultaneamente ignoraram e cantaram este cárcere?

Agarrando-se às grades geladas e ferrugentas, Horácio não encontrou qualquer dissonância entre o rigor do cárcere e o esplendor da crista do castanheiro.

sábado, 15 de agosto de 2015

Terceiro dia

O terceiro dia teve 602 palavras. 3468 caracteres dispostos em 1 página e 1/2.

Muito pouco para um dia, dirão. Algo que se lê em meia dúzia de minutos. E contudo, quando entro por esses minutos adentro deparam-se-me anos que ameaçam tornar-se numa eternidade.

O que têm 602 palavras e meia dúzia de sinais de pontuação para gerar este efeito?

Serem apenas 602 e quem as escreveu não ter necessitado de escrever mais, nem quem as lê necessidade de continuar procurar. Nestas 602 palavras não se encontra nenhuma falha que mereça interrogações. Não há razão para procurar mais, nem para a passagem do tempo, pelo que o dia se dilata sem nenhuma alteração.

Muitos outros tentaram obter o mesmo resultado, mas as palavras foram-se enleando umas nas outras. A complexidade da tarefa exigiu o serviço de um escrivão. Foi a ele que coube a tarefa de ir detetando as inexatidões e as corrigir como podia, com mais palavras. Não termina aqui a dimensão dessas obras. Coube aos seus leitores a responsabilidades de as fazerem ainda maiores e por convicção, seja no escrivão ou na obra, acrescentarem mais explicações. Assim surgem as obras gigantescas, finitas.

A mim não me coube esta sorte, senão não estaria a falar de um infinito terceiro dia, mas de um grande número de dias normais, de uma vida. Não que não tenha tentado, primeiro com a obra e depois com o escrivão. Mas se a primeira é incólume a questões, as incoerências do segundo estão coerentemente descritas na primeira. É, assim, uma obra que explica o escrivão. É essa a marca da sua perfeição, o escrivão não cria obra, é criado por ela, por isso não é necessária nenhuma justificação.

Não sei como, mas muito a custo escapei à paralisia de tamanha perfeição. E ainda assim, por vezes, este dia persegue-me, tal como as más companhias não deixam de se insinuar junto daqueles que com sofrimento se libertam de um vício.

Por tudo isto, o terceiro dia é uma recaída, um buraco no tempo.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Retângulos, janelas e pontos

Observo, por entre os retângulos da grade da varanda, os prédios entrecortados em fim de tarde já escura. Prédios retangulares, polvilhados de janelas que espaçadamente se vão acendendo e apagando. Dentro das janelas iluminadas passam, súbitos, pequenos pontos de gente.

Também eu caminho na luz da sala enquanto os meus olhos seguem os retângulos da varanda.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

O burro

O copo mergulha na mancha escura. Enche-se e é puxado para cima escorrendo água. Um bater cadenciado, cada vez mais nítido, marca o compasso da subida. Solta a água, reinicia a descida e fica suspenso, balouçando, boquiaberto a olhar para o fundo do poço.

A água transparente cai sobre o tabuleiro, separa-se para visitar os cantos e encontra-se de novo ao centro. Numa onda corre pela calha em direção ao buraco de pedra que leva ao tanque. É engolida e perde-se no escuro.

O homem vai encaminhando a água castanha que lentamente ensopa a terra. A sachola matraqueia entre lama e pedras. O homem ajeita a aba do chapéu e sente o fresco no círculo de suor em volta da cabeça.

Uma pedra da parede do poço, que vê numa nesga da saca que lhe cobre os olhos, traz-lhe algo à memória. Estaca a olhar e o bater cala-se.

A voz grita, ah burro do diabo. Volta a sentir a canga no pescoço, atira o corpo para a frente, exala pelas largas narinas e o travão da nora recomeça a bater.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Carduelis Carduelis

O meu nome é Glória. Inventam-me muitas origens, mas eu vim de dentro de um ovo. Eu sei porque estive lá. Era um sítio onde tudo era redondo, onde os movimentos eram arcos e se davam voltas. Quente, quase sempre, nem imaginava que pudesse haver outro lugar, até que senti sons estranhos. Inicialmente notei apenas uma ligeira pressão sobre o ovo e depois, quando essa pressão desaparecia, ainda que por instantes, ficava menos quente e os sons aumentavam de volume, tornando-se mais nítidos.

Embora ainda estivesse dentro do ovo já me entretinha a imaginar o que estaria lá fora. Pobre imaginação. Julgava que este ovo estava dentro de um outro ovo maior. Neste estavam os sons mais próximos, aqueles que me eram mais familiares. Um bater seco no ar seguido de um abanar. Um contínuo ranger associado a um baloiçar. Mas, puxando ainda mais pela imaginação, conjeturei que este ovo, que cobria o meu, deveria estar dentro de um outro ainda maior. Tinha que ser assim pois não havia outra forma de perceber os distantes balbuciares que vinham sobretudo da parte de baixo do ovo. Eram sussurros seguidos de gritos murmurados e corridas abafadas. Tudo muito apagado, muito ténue.

Quando já tinha explorado todos os sons que me cercavam e os tinha associado aos dois ovos onde o meu se encaixava, dava comigo a imaginar, por analogia, mais sons que não ouvia e mais ovos que os justificassem, todos dentro uns dos outros. Assim passava os meus dias e quiçá imaginei tudo o que é possível imaginar dentro de um ovo.

Um dia enganei-me a fazer um movimento, que não saiu em redondo, e rompi o ovo. À minha frente estava um menino tão boquiaberto como eu. O meu nome é Glória.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Segundo dia

Recordo perfeitamente o segundo dia. Prolongou-se por dezanove dias e terminou há pouco. Nele, perenes, encontro retângulos, janelas e pontos, mas há outras memórias mais difusas que vão e vêm.

Encontro a memória de um autocarro, seguido de um metro, seguido de um comboio, em que não viajei. E o retorno dessa memória, um comboio seguido de um metro, seguido de um autocarro, de regresso a casa. As memórias podem ser assim, vividas em dois sentidos, num a partida e no outro o regresso, sem termos feito nenhuma das viagens. Os mesmos objetos intercalados de diferentes maneiras.

Há memórias ainda mais difusas e que portanto nos parecem alheias. Contrariamente às primeiras, são memórias que pontualmente passam como picos de montanha no percurso de um avião. Enchem o dia como batidas de coração, marcam o ritmo das primeiras, dão-lhes cor e sabor mas quase não damos por elas. Por isso as imagino alheias, aparentam não ter nexo, feitas de memórias que partiram com o tempo e que regressam aos pedaços.

Mas regressemos aos pontos perenes, as janelas e os retângulos. Na memória fico indeciso sobre onde começa um retângulo e termina uma janela. Talvez o mais importante seja o paralelepípedo onde me encontro, feito de um infinito número de retângulos que continuamente se cortam. Dos vários retângulos, daqueles que estão na fronteira do paralelepípedo, um poderá ser uma porta, outro uma janela e outro, ainda, abrir-se-á para a varanda.

Recordo caminhar dentro desse paralelepípedo, entre dois pontos. Nesse percurso, cada vez que atravesso um dos infinitos retângulos sou perpassado por uma memória. No conjunto, estas memórias dão o tom ao caminhar. Desloco-me com os olhos posto no retângulo que dá para a varanda mas o que vejo refrata-se nas memórias de outros inúmeros retângulos que se entrepõem entre mim e onde os meus olhos se fixam.

Tudo junto, somando tudo, o segundo dia teve uns poucos segundos de duração.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Vigésimo quinto dia

Agora, neste vigésimo quinto dia, vamos olhar para dentro do casulo. Para o casulo na fase borboleta. Uma fase de leitura, depois da escrita feita pela lagarta. Como se alguém tivesse nascido dentro de uma biblioteca, tenha andado por ali às voltas e um dia descubra um livro com o nome de porta.

A vida da borboleta através do casulo é um caminho entre o seu centro e as coisas sem nome. Um caminho que pode tomar muitas formas.

Em algumas delas a borboleta corta a direito. Numa primeira camada de nomes que referem nomes, que muito vagamente indicam a existência das coisas, suspeita que possa haver coisas sem nome e entra num frenesim que imediatamente a impele para a camada seguinte, e assim sucessivamente.

Noutras, a borboleta embrenha-se na leitura, ora se aproxima mais das coisas, ora se afunda nos nomes de nomes. Diz-se, mas não acredito, que esta leitora tem uma vocação de escritora. Uma borboleta com complexos de lagarta. Não acredito, pois ainda não viu as coisas sem nome e, olhando para o seu rasto, não é claro que, se entre camadas, entre prateleiras, entre estantes, entre salas e salas repletas de livros receosos da traça, tenha suspeitado da porta. Não é uma escritora, é uma leitora devoradora, pois mesmo a última linha escrita pela lagarta, a do auge da retórica, apenas se justifica por todas as outras linhas, e estas pelas coisas sem nome.

É a borboleta que corta a direito, a que faz uma leitura libertária, aquela que poderá vir a ser lagarta.

In da Memória da Areia dos Bichos

domingo, 9 de agosto de 2015

Viagem galática

Tinha pensado naquela viagem há muito. Planeado tudo ao detalhe. Não sabia o que encontraria mas a informação recolhida garantia-lhe que se virasse sempre à direita voltaria ao ponto de partida. Era uma informação que foi juntando aqui e ali, ouvindo desapercebidamente as conversas. Conversas de mulheres que se alongavam no terraço pela tarde terminando apenas para irem fazer o jantar a maridos que nunca tinha visto. Foi na certeza da existência das casas para onde estas mulheres corriam à espera dos maridos que alicerçou o seu plano.

As primeiras explorações fê-las ao fundo das escadas. Aí, o portão que felizmente se encontrava quase sempre aberto, dava para uma rua que à direita logo se precipitava numa esquina e à esquerda tinha uma longa subida por onde achava que deveria ocorrer o regresso. Antes de partir certificou-se de que a seguir à esquina à direita se avistava outra, também à direita, indiciando o retângulo perfeito que havia imaginado.

Quando finalmente resolveu iniciar o empreendimento, foi com um misto de alegria e medo. Encontraria as imaginadas esquinas que lhe permitiram regressar? A primeira conhecia bem e rápido a cruzou. Esse foi o impulso inicial que o impediu de voltar atrás. A isso também ajudou a descida que se seguiu. Foi então que dobrou a segunda esquina. À sua frente apresentava-se-lhe uma enorme subida que não tinha imaginado. Tenebrosa esta ladeira que o impedia de confrontar o plano com a realidade. Era ladeadas por casas com janelas que o olhavam como a um estranho. Respirou fundo e subiu-a impelido pela resignação dos que fogem de casa.

Quando chegou ao cimo viu o seu esforço recompensado. A uma curta distância já avistava uma outra esquina que possibilitaria uma nova curva à direita, e a quase certeza do retângulo. A alegria tomou posse do que antes o medo dominava. Agora já não tinha pressa em voltar. Sentia o ar e o vento encherem-lhe os pulmões enquanto os olhos bem abertos observavam com curiosidade as casas e as janelas cheias de luz.

Foi então que a uma janela de um primeiro andar surgiu um ser, gordo e disforme, que, apanhando-o desprevenido, lá de cima lhe atira: Ó Tózinho, que andas aqui a fazer sozinho? Era então aqui que ela vivia, a gorda de sacristia com a mania de trocar bolachas secas por beijos molhados nos quais sempre se sentia manducado.

Toda a viagem se destroçou. O galático retângulo perfeito, que alguns metros mais à frente se confirmou, perdeu todo o seu valor e regressava agora, sem qualquer medo ou alegria, revoltado com a pequenez do mundo.

sábado, 8 de agosto de 2015

Nicolaus Nicolau

De todos estes bichos há um que me intriga mais do que os outros. É a espécie Nicolau do género Nicolaus. Um bicho em que cada exemplar não deve diferir dos restantes e, contudo, como isso está constantemente a acontecer toda a espécie se vai moldando à alteração ganhadora mais recente. Com propriedade, nem sequer se pode afirmar que a espécie Nicolau exista, mas sim, que existe um conjunto de espécies do género Nicolaus e que estas espécies de um único exemplar se copiam num sincronizado movimento, como os peixes de um cardume. Sempre quase a ficar iguais.

Para uma melhor análise vou-me focar num único exemplar de uma espécie do género Nicolaus. Chamemos-lhe, para ter um nome, Senhor Nicolau. Tomo aqui a liberdade de usar o nome da espécie, Nicolau, para referir o seu único exemplar, o que não será um abuso pois ele é efetivamente único, e uso Senhor para denotar uma outra espécie. Não é uma espécie real, essa é Nicolau e tem apenas um exemplar, o Senhor Nicolau, mas é uma espécie criada, daquelas que constantemente estão a aparecer, e desaparecer, dentro do género Nicolaus.

Foquemos-nos agora nestas espécies criadas, aquelas que permitem agregar estes exemplares desgarrados do género Nicolaus. No caso do Senhor Nicolau é Senhor. O Senhor tem propriedades e foi mandado estudar para Coimbra para ser Doutor. Contudo falha a transitar da espécie Senhor para a espécie Doutor. Isso provoca alguma consternação noutros membros do género Nicolaus, especialmente os mais próximos, pois não era isso que dele se esperava. Estranhamente, ao Senhor Nicolau isso não o parece afligir. Continua a ser tratado como são tratados todos os da espécie Senhor, com deferência e um olho aberto à cata de oportunidades.

E as oportunidades não faltam. Aparentemente desimbuído de qualquer preocupação acerca da sua espécie criada, o Senhor Nicolau vai perdendo o Senhor, ficando cada vez mais só Nicolau. Um pecado capital numa espécie de um único exemplar.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Vigésimo sétimo dia

Há uma outra questão que deixámos para o vigésimo sétimo dia. Que relação existe entre os nomes que a borboleta atribui às coisas sem nome e os nomes que leu ao romper através do casulo?

Partimos do princípio que ambos os conjuntos de nomes são coerentes. Os das coisas sem nome, pela repetição a que obriga a luta pela vida. Será impensável para a sobrevivência da borboleta, e para o seu objetivo de regressar ao casulo, que cada vez que pouse numa planta lhe atribua um nome diferente. Que viva num constante êxtase de novos nomes. Isso deixará para o fim, para a fase lagarta. Agora cada poisar é o solidificar de um nome e o resto vem por arrasto. Um nome puxa outro nome, palavra puxa palavra, e é nessa ordem, e na repetição dessa ordem, que é feita a coerência dos nomes das coisas sem nome.

Já os nomes do casulo têm a coerência da biblioteca. Nomes construídos por escritores que se leram, amaram e odiaram, que concordaram e profundamente discordaram. E tanta dialética só pode gerar um todo coerente.

Sendo ambos coerentes é agora necessário saber se há alguma diferença na essência da coerência. Para isso imaginemos um casulo de coisas sem nome e um mundo biblioteca. Neste cenário, as lagartas definham com exuberância construindo coisas sem nome e as borboletas vivem entre nomes e construções de nomes.

Não, não diferem na essência.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Trigésimo segundo dia

O trigésimo segundo dia está cheio da serenidade da planta, e deixemos o dicionário de lado para não repetirmos o trigésimo primeiro dia.

Que nome poderá sair do encontro entre a borboleta e a planta, em que uma se agita à cata de nomes e a outra se deixa tocar com serenidade. O nome que a borboleta dá à planta é a cristalização de um verbo. Um nome que se pretende volte a ser verbo, em cada nova comemoração, em cada nova recordação. Contudo, o tempo vai esbatendo o estranhamento do toque da pata na planta. Quando o tempo termina a sua obra o nome esquece o que já foi, tal como uma estátua é a negação do verbo.

Já o verbo que a planta dá ao toque da borboleta é uma coisa sem nome.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Septuagésimo quinto dia

O dia de hoje, o septuagésimo quinto, é hoje. Por isso fica destacado no calendário: é o dia de hoje.

No dia de hoje, quando a borboleta poisa na planta e o nome se lhe agarra à pata e sobe por ela acima, é um corpo que se agarra a outro corpo. O corpo da planta ao corpo da borboleta. Um nome celebra esse acontecimento. É com ele que a borboleta o comemora sempre que num outro instante volta a poisar numa planta.

Já é mais obscuro se a planta o comemorará com o mesmo nome.

domingo, 2 de agosto de 2015

Vigésimo primeiro dia

O vigésimo primeiro dia é o da borboleta atravessando as paredes do casulo.

Recordar-se-á da lagarta? Ou aprenderá da sua história roendo as paredes do casulo em direção à liberdade?

Um processo curioso este. Primeiro vai ler a parede mais interna, aquela em que a lagarta, no auge da retórica, deve ter deixado escrita pura emoção. Depois a emoção vai-se reduzindo e a borboleta começa a aprender nomes de coisas que supostamente devem existir. Quando finalmente rompe o casulo encontra as coisas sem nome.

Nas suas leituras libertárias terá a borboleta encontrado as instruções sobre como fazer um casulo?

sábado, 1 de agosto de 2015

Nenuco

O Ken levanta-se. Na cama, a Barbie ainda dorme com os cabelos entre os lábios. Segue de mansinho para a cozinha. Afasta os copos de Gin da noite anterior para colocar o espremedor. A laranja enche-lhe a mão, corta-a com uma faca, espreme cada metade e atira para o lixo os restos retorcidos. Aproxima o copo da boca, sentindo o cheiro do sumo cada vez mais próximo. Entreabre os lábios e quando o sumo os toca sente um ruído no quarto. Deve ser a Barbie a revirar-se na cama, pensa, e recorda-se de no revolver da noite ela lhe ter chamado Nenuco.

Conduz o seu descapotável, com os cabelos soltos, os largos óculos escuros e o relógio que gira no pulso com as curvas da estrada. Vai deixando outros carros para trás, vê-os aproximar à sua frente e de seguida afastarem-se atrás de si. No iPhone a foto da Barbie começa a pestanejar. Curva à direita e o iPhone continua a vibrar sobre o tapete, onde já não o pode alcançar. Vai procurando juntar todos estes fragmentos, nunca se tinha imaginado Nenuco.