domingo, 19 de dezembro de 2021

Ver, agir, imaginar

Ver é como é, agir vem com a vida e imaginar é tão fácil. Catarina é como é, e quanto a isso talvez já não haja nada a fazer. Mas quão previsível é Catarina? Com que facilidade podem agora Zé e Joaninha identificar todas as variáveis que levam a Catarina? Dizer, com certeza: é assim por causa disto, desta e daquela variável. Agora, claro, nem tudo é zero ou um, em tudo há uma questão de sorte. Maximizámos as probabilidades nas variáveis adequadas. Foi o que fizemos, e deixámos o resto à natureza. Consideremos o momento em que Zé e Joaninha concebem Catarina, não interessa agora se intencionalmente ou não. Podemos definir rigorosamente, nesse momento, a probabilidade de Catarina vir a ser Catarina? Podemos aquando da conceção saber exatamente qual a obra produzida? Sabemos, por experiência própria, que no momento na conceção não se pensa em nada. Não se planeia. Talvez alguns estupidamente o façam, ou digam que o fizeram. Aos primeiros, os meus parabéns. Aos segundos, também. Porém, quando naquilo nos empreendemos, não se define onde se vai estar daqui a trinta anos, nem sequer daqui a dez anos, nem mesmo daqui a um minuto. No momento da conceção concentramos naquele fluir. Damos a nossa contribuição para uma obra começada há quatorze mil milhões de anos. E, se formos humildes, dizemos, aqui vai o meu pequeno contributo. Talvez pudesse ser mais. Talvez pudesse ser menos. Mas é o que posso dar agora. Já os presumidos dirão: toma. Não obstante, no fim, vai tudo dar ao mesmo. Um pequeno estalido na grande explosão. E por causa de todos os pequenos estalidos que precederam este, não importa se dados com mais ou menos convicção, não importa se engrandecidos ou não pela palavra história, percebemos que as causas produzem os seus efeitos. E é já depois, tombados, que começamos a fazer contas à vida. Olhamos para trás, juntamos, somamos, e imaginamos os mais variados futuros. Mais uma vez, não os planeamos. Só que o regresso do sangue ao cérebro é como o suscitar de uma primavera. E então, em virtude da satisfação, assenhoramo-nos de toda a criação. Aí sim, planeamos. Convencemo-nos que o nosso pequeno estalido é toda a explosão. E depois da maculada intervenção deitamo-nos a imaginar. Imaginar é fácil quando de nós fazemos o modelo. Ah, se for, será Catarina. Pensamos. E será uma versão aumentada de nós próprios. Catarina a Grande, na determinação. Catarina a Eufémia, no significado. Catarina a Nossa, na memória. A união de todas as coisas. O néctar do sumo, agora que estamos reduzidos sobre os lençóis. Exatamente como nós somos, mais o violino, o ballet, a ginástica, a natação, a escola. Damos valores a estas e a outras variáveis. E sonhamos que Catarina terá todas as oportunidades de ser como quiser. Como nós. No entanto tem disto a primavera. É como o otimismo dos mercados, inibe alguns caminhos, dá valores definitivos a algumas variáveis, e então é só brincar às probabilidades. Por isso, não obstante intervenhamos no momento da criação e exercitemos as variações no modelo, Catarina é como é.

sábado, 6 de novembro de 2021

Cuscovihões

desalentados pela ausência de resposta e no automatismo de carregar regadores e flores na ânsia de ter apresentável por fora o que por dentro já lá vai vertem a intensidade da procura a perscrutar os passantes que na sua aleatoriedade trazem novidade àquele espaço eterno ainda que entrecortado por intervalos fechados de algumas dezenas de anos que são as pequenas janelas de agitação de que estes dedicados cuidadores já voluntariamente se excluem mais por teimosia que por usufruto de algum profundo saber que a verdade também chega por camadas cada uma com o seu grau de satisfação da descoberta da relatividade da anterior só que estes ficaram por aqui ajeitando os entes queridos como quem com máxima perícia estaciona na perfeição o seu automóvel num exíguo espaço e agora não se sente com capacidade de dali o retirar quer porque no fim é só mesmo aquilo e agora que se conseguiu este lugar de que vale a pena estar a mexer ou quer porque recomeçar é também uma canseira sobretudo uma canseira por causa da porra da inércia ou quer porque por aqui mais tarde ou mais cedo desfila toda a vida e assim se assegura desde logo um bom assento na bancada para apreciar o anunciado espetáculo que nunca os irá defraudar ou quer porque dado o elevado preço da viagem se comprou um bem mais acessível lote de bilhetes só de ida ainda que adquiridos à pressa na irreflexão da emergência mas uma vez aqui o hábito faz o monge e vive-se da comparação silenciosa de trocas de olhares em que pelo menos se garante que o teu não é maior que o meu ou quer porque se ganhou um gosto pela jardinagem como manifestação de irrevelado perfecionismo no manuseamento do regador que na vida nunca se deve ficar parado e as rotinas ajudam ao passar das horas ou quer porque o que partiu ainda tinha muita existência em atraso e deixou aos que cá ficam a obrigação do pagamento da pesada dívida de descontar os dias não vividos um a um até somarem o todo em falta e depois poderem partir resgatados ou quer porque aqui se encontrou a paz que alguns parecem ter vindo ao mundo com um turbilhão agarrado aos pés e não há palavras nem razões que os acalmem e se pode agora finalmente falar em conciliação com eles estás a ver não precisava de ter sido assim ou quer porque estão aqui como figurantes da visita do dr. josé galvão psiquiatra ou túmulo do dr. josé galvão advogado aqui colocados pelo grande arquiteto como ambiciosos candidatos a atores tão cheios por dentro mas com papéis bem pobres de transparecer para fora cabendo-lhes apenas a missão de mostrar a pequena curiosidade de saber quem é aquele identificando-o não por quem é mas por quem visita já que estão convencidos que é essa a única fidedigna morada e por isso um comanda o outro com os olhos segue-o vê quem vai honrar e o mandado segue zé em pequenos passos disfarçados regador descaído na mão como um detalhe de personagem que o enche de orgulho mas em que ninguém repara é na campa do dr. josé galvão advogado e este homem magro careca macerado só pode ser o seu neto

domingo, 25 de abril de 2021

Só se estanca na torrente

É uma carga de trabalhos, é verdade, mas depois sabe tão bem a explosão, é uma libertação, um deixar de temer. Tudo começa com a espera minuciosa de quem conta os dias. Não que se saiba quantos serão, mas a relevância de um número está no anúncio do seguinte. Este é o trabalho da minha vida. Eu, o amor de Zé e Joaninha, sou uma insatisfeita soma acumulada, tenho o valor da semente. Germino em silêncio. Nos olhares de Zé e Joaninha não, mas da boca deles não sai uma palavra, pelo menos que os outros possam ouvir. Sussurram em monossílabos, sim, na cama, com os corpos encostados nem se pode dizer que isso seja falar. As línguas primordiais devem ter sido terrivelmente húmidas, sendo a sua diversidade culpa da distância. Mas isso já não é para mim. Eu sou mais como uma língua dentro de outra língua. Em que a de fora não se cala à minha procura. Presente-me, encosta-se mais e mais a mim, e para isso fala e fala, complexifica-se. E para lhe fazer a vontade lá vou eu no escuro, de dois para quatro, de quatro para oito. Também tenho as minhas fraquezas, dou-lhes motivos para falar. Mas ao princípio, de fora não se nota nada. Nem sequer a mais leve suspeita. Para todos os outros sou apenas fruto da imaginação. A não ser para o Zé e a Joaninha que trabalham com essa língua exterior feita de sobressaltos. Temores, por vezes, de que se venha a saber, tristezas, outras vezes, de que nunca chegue a acontecer. E se me multiplico é antes de mais para os acalmar. Penso que lhes devo dar algum sinal. Um conforto. Tenham calma, vai ocorrer. Para essa certeza não há como um bater contínuo e regular. Uma prova de que estou em movimento. Sei da alegria que lhes dei primeiro, e do renovado temor depois. Agora passam eles o tempo à escuta desse bater, a imaginar o progresso a partir de fora. Fazem planos de como irá ser. Agora sim, falam e falam com entusiasmo, disto e daquilo. E de repente calam-se, olham para os lados assustados, com o receio de estarem a ser ouvidos. Põem-se à espreita para se certificarem que nada interfere com o meu bater. Mas eu já não sei fazer mais nada do que crescer. Talvez até me incomode tanta cautela. Então, não era isto que queríeis, pergunto-lhes, uma vez em marcha não há volta atrás. É nesses momentos que me dá alguma neura, soqueio e pontapeio. Não com a regularidade com que bato, mas como quem já não se importa com as sequelas. E lá estão as mãos do Zé e da Joaninha a procurar acalmar-me. Chega de inquietações, digo-lhes para os vivificar, a sede de uma espera só se estanca na torrente. Mas sinto-os hesitantes, pensaram-me, desejaram-me, e agora falta-lhes a imaginação de quem nunca antes por aqui passou. Está então nas minhas mãos. Dou voltas e mais voltas à situação. Empurro daqui, puxo para acolá. E então ocorre-me que talvez o mundo não tenha que ser assim, que esteja de pernas para o ar. Esse é o problema. Dou uma volta e tudo faz sentido. Então, de madrugada, de entre as pernas de Joaninha rebento em sangue e flores, e sinto a liberdade de deixar de ser apenas eu, o amor de Zé e Joaninha. Afonso.