domingo, 9 de outubro de 2016

Mata-moscas – Joaninha

Sou da cepa antiga, feita de homens que corajosamente enfrentam os seus inimigos, olhos nos olhos, sem subterfúgios. Enojam-me os ataques cobardes, feitos de gases assassinos que matam com lufada perfumada. Dir-me-eis, mas, o que são as disputas palacianas senão a rigorosa dosagem veneno com a palavra gentil? Sim, é verdade. Por isso mesmo o Sr. Marquês há muito tempo se remeteu ao isolamento do seu palacete no Alentejo. Não procurou a reclusão do povo, mas a da sociedade, a que o Sr. Marquês naturalmente pertence por nascimento. A quem estas veleidades custaram foi à Sra. Marquesa. Mas, há muitas gerações que nesta família os homens se atiram a cavalo a cometer imprudências, ficando as mulheres à guarda das ameias. São, como vedes, da linhagem mais antiga, sem as perturbações do romantismo. Sinto-o quando o Sr. Marquês abre portadas e janelas do grande salão deixando entrar a luz, e as moscas. Todo eu me encho de excitação. Embora saiba que é pura imaginação minha, mas não posso de deixar de ouvir os trompetes festivos, o latejar dos cães e a azafama dos homens imbuídos nos detalhes que distinguem os pequenos dos grandes caçadores. E o Sr. Marquês é dos grandes. Como me empunha! A exatidão do ângulo entre a palmatória e a janela ou parede, feito de dois outros ângulos, o maior no cotovelo e o menor no punho, que constantemente se recalculam durante a aproximação ao alvo, equilibrando-se no momento crucial, quando num movimento lento da mão, para trás primeiro, e rápido depois para a frente, sinto o sacudir que antecede a vertigem da descida. Mas não nos precipitemos. Estávamos nos preparativos. Nas moscas que com impunidade entram com o sol. Não sabem no que se metem. Coitadas, está na sua natureza, e o Sr. Marquês sabe criar as condições para se revelarem, para mostrarem quem realmente são. Quem resiste ao chamamento de um palácio cheio de sol? Resistiriam, talvez, se fossem de outra estripe, mas moscas são moscas e essa foi há muito a decisão do Senhor. Andam a cirandar. Voos de alegria entre os pesados reposteiros, onde poisam cheias de volúpia, enterrando as patitas nos cerrados pelos do veludo. E o Sr. Marquês observa-as com meio sorriso, impassível. Meio sorriso, pois desde a trombose que ficou ligeiramente paralisado do lado esquerdo. Por isso, quando agora caminha, vai balanceando a velha altivez da direita com um leve arrastar do pé esquerdo. Determinado, fecha janelas e portadas trazendo o escuro de volta ao salão e levantando o pano ao início da caçada. Vou agarrado na mão direita quando o Sr. Marquês parte para a sua missão. Poisa o bastão com suavidade no chão, ainda que a mão esquerda trema. Arrasta sorrateiramente o pé esquerdo. Do lado direito tudo perfeito. Fita uma mosca que trazia debaixo de mira há algum tempo. Quando a tem em frente, numa figura acrobática, equilibra-se no pé direito para ganhar precisão afastando os tremores da esquerda, e, zás. A mosca fica presa na minha rede e o Sr. Marquês vê os olhos da Joaninha, que o fitam. Murmura com tristeza, morre bolchevique.

sábado, 17 de setembro de 2016

Do David Hume ao Senhor Palomar

Encontra David Hume o Senhor Palomar. Dada a sua avançada idade, David Hume, quando fala, é já uma memória de si próprio. Por isso repete-se, eventualmente alterando apenas o nome do seu interlocutor. Meu caro Senhor Palomar, diz, sabe que todo o nosso conhecimento é baseado nas nossas experiências. O Senhor Palomar fica-se absorto observando David Hume. Tem um rosto velho de empirismo, onde as experiências se vão acumulando em camadas, umas sobre as outras, comprimindo-se sem verdadeiramente se misturarem. Poderá haver uma síntese da experiência? Questiona-se Palomar. Será possível captá-la num relance só ao rosto de David Hume, ou é necessário ir com o bisturi e a precisão do cirurgião cautelosamente separar camada a camada e de seguida analisar cada uma com a obsessão do cientista, numa cirurgia estética com fins metafísicos. Sendo um empirista militante, o Senhor Palomar prefere debruçar-se sobre a segunda possibilidade, já que as sínteses são as armadilhas do pensamento, e por isso foge de abstrações e generalizações como o diabo da cruz. Contudo, como o Senhor Palomar é também avesso à intervenção, pois nela suspeita a geração de mais camadas, prefere proceder à observação dos sulcos das rugas que oportunamente trazem ao de cima as passadas experiências. Quando lhe ocorre esta estratégia logo uma outra questão se levanta. O que provocas as rugas? Porque é que as experiências mais antigas não se conformam? Sentir-se-ão subjugadas pelas novas experiências? Será o rosto velho o campo de batalha das experiências? O Senhor Palomar decide descartar esta hipótese pois habitou-se a encontrar paz numa cara cheia de rugas e esta sua experiência parece-lhe mais verdadeira que qualquer uma das suas anteriores conjeturas. Mas, logo uma outra dúvida assalta o Senhor Palomar. Sim, talvez seja a paz dos campos de batalha, de depois do estrondo das explosões e dos gritos da estupidez. Se assim for, o rosto de David Hume terá afinal uma síntese feita de uma harmonia de corpos sem identidade que se lamentam lado a lado. Aqui, o Senhor Palomar tem a noção que está a ser vítima de uma experiência que não é sua, uma experiência lida nas descrições que o Senhor Tolstói faz dos campos de batalha Napoleónicos. Guerras que aconteceram após o desaparecimento factual de David Hume. Um calafrio percorre então o Senhor Palomar. E se o rosto cheio de rugas de David Hume foi um anúncio profético das convulsões que viriam, das guerras a que se entregariam as experiências futuras, e que ao estar o Senhor Tolstói a descrevê-las, estava a descrever duas coisas numa só, o rosto de David Hume e o ocaso do campo de batalha, a misturar camadas. Tendo o Senhor Palomar ficado satisfeito por ter chegado a um paradoxo, é trazido de volta pelo que tem à frente. Meu caro Senhor Palomar, diz-lhe David Hume, porque não me responde? O Senhor Palomar apercebe-se que passaram umas dezenas de anos desde que David Hume o interpelou, que se encontra agora em 1983 e está a ser terminado por Italo Calvino.

17/9/2016

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Gravidade – Gonçalo

O Gonçalo atirou-se por uma janela. Sem dúvida um ato de alguma gravidade. A gravidade óbvia associada ao estado do corpo após se estatelar lá em baixo, no pavimento, depois de uma queda de vários andares, mas também a gravidade que pode resultar de um ato quiçá irrefletido e de que Gonçalo não terá com certeza avaliado todas as consequências. Atingirá o corpo de Gonçalo alguém lá em baixo? Isso seria grave. E se alguém, mais impressionável, perder o controlo do automóvel ao ver um corpo em revolução por aí abaixo, e atropele um outro que se quedou no meio da passadeira a observar boquiaberto Gonçalo às reviravoltas. Se calhar esse outro estacou pois ficou com uma sensação de o conhecer de qualquer lado. Sim, pelo menos do que viu no ar, pois uma vez no chão Gonçalo ficou menos reconhecível, para além de uma amálgama espectral de órgãos e sangue. Terá porventura de se recorrer à ciência para das partes se reconstruir o todo e alguém poder ser contactado para vir buscar os restos, para dar-lhes outro repouso que não seja a calçada portuguesa. E qual será a gravidade do atropelamento deste transeunte, vítima da sua obsessão em analisar catástrofes? E de todos aqueles que depois de identificado o trambolho voador irão criar nos seus cérebros associações para dar um sentido aquela insanidade? Terá ela um caráter mobilizador que faça com que outros se venham a atirar de outros edifícios, pois o fogo puxa pelo fogo? Isso seria muito grave, não seria? Não! Digo-vos eu que sou a gravidade. O que são setenta e poucos quilos desequilibrados por cinco gramas de peso que levam um corpo a precipitar-se de uma janela? Mesmo que como consequência disso magotes de outros corpos se atirem contra a terra mãe, sonhando, ou não, com virgens no além? Nada, repito! Eu estou habituada a mais, muito mais. Forças proporcionais ao produto das massas, que podem ser gigantescas, por isso não me deixo impressionar pelas pequenas quedas. Dir-me-ão que não são massas quaisquer, são massas com consciência, mas se procurarem bem na minha equação não encontrarão lá a consciência. Suponho que alguns, mais pitagóricos, dirão que ela está encerrada na constante de gravitação, porque é universal e permite estabelecer uma igualdade. Mas, não me venham falar de igualdades quando um desmiolado se atira inconscientemente, sim inconscientemente, de uma janela, sem outro fim que não seja o chão. Insistirão esses metafísicos que são os atos de inconsciência, apanágio dos profetas e dos santos, que despertam as consciências. Poderá ser que Gonçalo durante a sua queda tenha sido alvo de alguma iluminação, tenha até descoberto uma fórmula revolucionária que explique o sacrifício dos corpos, em que surja como variável a dimensão do vazio no peito e vários fatores de decaimento dos órgãos, e que, maravilha da ciência, esta nova equação se unifique com a da gravidade, explicando a queda. Tretas! A força é diretamente proporcional ao produto das massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância. Pum.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Pequeno político – Humberto

Nesta matéria quem tem uma opinião formada sou eu. É fácil ter opinião, mas nem todas as opiniões são adequadas. Uma opinião deve marcar presença, para ser notada, senão de que serviria ter opinião, e ao mesmo tempo não incomodar, e muito menos ofender, para além do estritamente necessário. Não é uma arte fácil, mas aprende-se, o Humberto que o diga. Cedo sentiu a convocação, ainda no secundário, para a associação de estudantes. Porém no início era mais a vontade que a perícia. Humberto abria a boca e lá saía a minha voz desconectada como se de um ato de ventriloquismo se tratasse. Recordo que o Romeu ainda observou com graça, Humberto, pareces um político a falar. Pobre Humberto, não estava à espera, perdeu o controlo e calou-me, começando ele a falar. Disse, pois... pois..., e pior, repetiu o Romeu dizendo, um político. Felizmente lá voltei eu a retomar o controlo e juntei-lhe mais esta matéria, e aquela, e aqueloutra, coisas de orçamentos, gestões, e acima de tudo as regras que nas suas nuances pregam partidas. Mas serviu-lhe de lição. A partir daí percebeu que nada poderia ser inesperado. Pega-se na coisa, seja ela uma pergunta ou um mero comentário, e começa-se a fiar, criando um novelo que vai embrulhando o que não interessa, deixando de fora a mensagem, saliente e luzidia. Essa é a regra principal que a todos recomendo, se não há uma mensagem mais vale estar calado. Nas reuniões identificamos facilmente os que falam porque gostam de se ouvir, ou pior, porque acreditam piamente no que dizem, daqueles que pragmaticamente dizem o que é necessário para atingir os seus objetivos. Por isso a mensagem não deve conter a verdade, como julgam os crédulos, mas sim o que é útil. Nisso, mesmo enquanto aprendiz e inábil, Humberto nunca esteve com os primeiros, sabia claramente que o jogo bonito e vistoso pode encher o olho, mas não traz vitórias tranquilas, daquelas que perduram. Esta é a segunda verdade que podeis aprender do pequeno político que está dentro do Humberto, a vitória a que deveis almejar é a de secretaria. Às vitórias de que não se percebe a origem não é fácil achar o fim. Não foi sempre um aprendiz o Humberto. No início ainda falava a duas vozes, daí a observação de Romeu, e eu andava um pouco aos trambolhões lá dentro, pronto para responder à chamada sempre que Humberto queria dar um a opinião, marcar uma diferença, enfim, marcar a posição. Com o tempo deixámos de ser dois e já não se percebia quando falava um ou o outro. Digamos que é isso o crescimento, moldarmo-nos por dentro com fantasias que com o tempo se tornam reais. Existe, contudo, nesse período de folga entre a fantasia e o corpo, uma visível falta de coerência que pode trazer desconforto. No caso de Humberto, o fim do namoro com Catarina não é alheio ao reparo de Romeu. Catarina tinha apenas 15 anos e não ficou indiferente. Humberto ainda tentou. Quase sentiu, ou simulou, o sofrimento da perda, tão normal nos adolescentes. Falou com ela, justificou-se, mas o fascínio nestas idades é puramente mágico, e aqui entre nós, Humberto sentiu um grande alívio.

sábado, 30 de julho de 2016

Mobocracy

Agora que alguns apontam Donald Trump como os limites da democracia, num piscar de olhos a uma ordem a la Singapura, um artigo interessante, Donald Trump and the Myth of Mobocracy, para trazer alguma luz aos iluminados.

domingo, 15 de maio de 2016

quotidiano

o que há na forma de uma costela de vaca do animal de que fez parte               um naco de carne com um osso para pegar     esparramado sobre o prato branco      acastanhado pelo fogo     com uns laivos do vermelho que já foi sangue               um bicho volumoso     esquartejado por aí     alguns pedaços no espaço oco do paralelepípedo branco do meu frigorífico     outros por outras insuspeitáveis concavidades               deixava com certeza uma marca no chão que pisou     uns cascos arredondados de aerodinâmica ajustada     feitos para pastar por vontade e correr por necessidade                 no prato corta-se em pequenos pedaços com a faca e aperta-se levemente entre os dentes     liberta um suco que nos acorda para a vida     roda-se para o ajeitar ao gume     toma outra forma      a pega mais longe      deixada para o fim      para o caixote debaixo do lava loiças                  há na costela de vaca a alguns euros o quilo a razão da existência do bicho     os anos a rapar calmamente erva     uns olhos esbugalhados     um cenário de prados e árvores que viram outras vacas                  sentada     trazendo à boca os restos arrancados     agora pacientemente triturados     num exercício de dupla satisfação