terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Um poço sem fundo

Por vezes questiono-me sobre se o ser é dizível ou indizível. A possibilidade de possuir um objecto por o dizer é bastante antiga e deve ter começado por ser um acto de magia. A representação de animais e peixes nas pinturas rupestres simbolizavam a capacidade de possuir a coisa em si e, consequentemente, de a matar.

Talvez para proteger a vida humana, e dado que a proibição de um ser humano matar outro ser humano é das mais antigas, foi desenvolvido este princípio de que o ser é indizível. Ele encontra-se nas religiões, em que o ser é referido como alma, em algumas manifestações artísticas, na sua procura do silêncio, ou até, de uma forma mais racional, na declaração universal dos direitos do homem, no respeito por todas as diferenças e portanto na impossibilidade de as reduzir a uma mera representação.

Mas será o ser mesmo indizível? Por exemplo, se observar continuamente uma pessoa, em todos os seus actos serei capaz de a possuir, de a tornar finita?

No filme Blade Runner há um diálogo que ilustra bem essa fronteira entre o ser e o não ser, entre o dizível e o indizível, entre Rachel, uma replicante, e Deckard, um blade runner (caçador de replicantes).

Rachael:    You think I'm a replicant, don't you?
Deckard:    Hah.
Rachael:    Look, it's me with my mother.
Deckard:    Yeah. -- Remember when you were six? You and your brother snuck into an empty building through a basement window. You were gonna play doctor. He showed you his, but when it got to be your turn you chickened and ran. Remember that? You ever tell anybody that? Your mother, Tyrell, anybody huh? You remember the spider that lived in a bush outside your window? Orange body, green legs. Watched her build a web all summer. Then one day there was a big egg in it. The egg hatched--
Rachael:    The egg hatched...
Deckard:    And?
Rachael:    And a hundred baby spiders came out. And they ate her.
Deckard:    Implants! Those aren't your memories. They're somebody else's. They're Tyrell's niece's


Mas Philip K. Dick torna os replicantes indizíveis quando coloca Roy, um outro replicante, a poupar a vida de Deckard e a morrer em paz.

Roy:    I've seen things you people wouldn't believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the darkness at Tanhauser Gate. All those moments will be lost in time like tears in rain. Time to die.

Os regimes autoritários sempre tiveram a tentação de tornar o ser dizível. Vejam-se as confissões, quase sempre obtidas através da tortura, durante a Inquisição ou nas purgas Estalinistas. Uma vez reduzido o ser à sua confissão, matá-lo, terminar com o seu corpo, era já apenas um pormenor.

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