domingo, 26 de novembro de 2023

Sociedade Sem Classes

Esta é uma história sobre a sociedade sem classes. Se tudo correr bem deverá acabar assim: Era uma vez uma sociedade sem classes onde o lobo e o cordeiro se alimentarão juntos, e o leão comerá feno, do mesmo modo que os bovinos se alimentam, mas pó será a comida da serpente!

Contudo, não nos apressemos, como em todas as histórias devemos começar pelo princípio se queremos chegar ao fim. E no princípio o lobo, o cordeiro, o leão, os bovinos e a serpente vão num avião, e nem sequer vão sozinhos. 

O voo está completamente cheio. Também não admira. Era o voo número 345 para a sociedade sem classes. Por isso logo os bilhetes se esgotaram. Quem não gosta de ir para uma sociedade sem classes? 

Bom, o leão foi, mas um pouco a contragosto, convenhamos, depois de muito aduzir. Quem o persuadiu foi a sua esposa, a leoa, que já há algum tempo se tinha convencido que comer muita carne não é de todo saudável. E tanto disso se convenceu que ela própria acabou por não comer nenhuma. O leão, que no início não deu muita importância, pois pensou que seria uma mania passageira, como ela já teria tido outras, arrependeu-se tarde demais. É que a leoa, quando finalmente deixou de comer carne, achou por bem incitar o marido a fazer o mesmo.

Como deveis saber, não há problema nenhum em haver alguém que nos tenta convencer de algo que nós não queremos. Dizemos-lhe que não e pronto, de mais a mais sendo leão. Que o leão se diz o rei de todos os animais e não tem de dar explicações a ninguém. Só que não foi bem assim que se passou. Quem lhe pedia era a sua esposa, e podeis ter a certeza de que o leão amava profundamente a sua rainha, pelo que não era capaz de lhe dizer que não.

E não lhe disse, o que se passou foi que pediu para lhe levarem a carne ao quarto à noite. O rei e a rainha dormiam em quartos separados, pois, como viviam num palácio com muitos quartos, podiam-se dar a esse luxo, e ainda assim ficavam muitos quartos vazios. 

De dia, à hora da refeição, lá o rei metia alguma salada na boca como prova do seu amor, e à noite banqueteava-se com as delícias de que ele gostava.

Deveis estar a perguntar-vos o leão amará mesmo a sua leoa...

In Histórias para Crianças (2023)

sábado, 3 de junho de 2023

opsinas e outras proteínas

Deus criou então
o homem à sua imagem
assim à imagem de Deus o criou
homem e mulher
assim os criou

e a imagem
entontece os rapazes
o que desperta 
nas raparigas a diligência
de saber como gira o mundo

e da noite fez Ele dia
mas não se percebe
porquê
se já todas as coisas
existiam

se os rapazes jogam à bola
observam as raparigas
o correr dos músculos
elevados do chão
sobre um par de sapatilhas

mas Deus que é Deus
não pode estar errado
e se fez as opsinas
então alguma razão
lhe cabia

discutem elas em silêncio
sobre o que não se via
advinham
supõem
e por vezes desvariam

não fiz nada de novo
diz Ele sem reserva
é verdade que já tudo era
mas quis Eu ao mundo
trazer uma nova luz

tanta luz também cega
por isso de olhos abertos
construímos sobre a terra
e com eles fechados
se reza

porque negais a luz
pergunta Ele
e não é apenas retórica ácida
mas sim o supremo elogio
das aminas

põe o slow e apaga a luz
rapazes e raparigas
fechai os olhos
que a peregrinação
depende de outras proteínas

parai com isso
ordena Ele exigente
abri os olhos
dei-vos cor e distância
maravilhai-vos

na sala às escuras
pelas cadeiras e pelo sofá
levantam-se rapazes e raparigas
tateando o negro
cheirando o calor

nada irrita mais
do que não ser escutado
anuncia por isso Ele tal abismo
por onde se cai 
aos pedaços

se cambaleiam
e hesitam no início
há no escuro tal atração
capaz de refazer
os princípios

respira fundo conformado
se calhar até 
pela música embalado
mas não há criador
que não se queixe do malcriado

encontram-se rapazes e raparigas
entrelaçando-se pelo pescoço
quentes
macios
feitos de osso

levanta a voz de novo
crente na salvação
faz ponto de autoria
deixar claro que em nada diferem
foram feitos à sua imagem

os rapazes sentem os seios
ainda que apenas
numa primeira
pequena e pontiaguda
impressão

porque tendes vistas curtas
diz Ele numa alocução
dá Deus nozes a quem não tem dentes
não vedes que
só quem vê cria

as raparigas aproximam as ancas
procurando o que há muito
adivinham
surpreendem-se com o volume
questionam-se sobre a perseverança

Ele
que está em todo o lado
pensa para consigo
trouxe Eu a luz ao mundo
e ainda assim reveem-se nas trevas

os rapazes 
exaltados
procuram 
o sossego
no baixo-relevo

pensa então Ele
na sua omnipotência
talvez eles tal como Eu
tenham de começar 
pelo princípio

as raparigas
indo às origens
não
hesitam
aninham

e então
os bafos
avizinham-se

e então
os corações
palpitam

e então
os estômagos
empurram-se

e então
as mãos
aventuram-se

e então Deus
grita
dopamina

e então
os rapazes
e as raparigas
veem
o dia

e então a mãe
inesperada
acende a luz e
diz
não quero disto em minha casa


 

domingo, 14 de maio de 2023

O Burro Castanho

Esta é a história do burro Castanho que tinha o nome mais óbvio que se pode ter, pois ele era de cor castanha. De uma cor castanha que não deixava dúvidas. Há burros de um castanho mais para o claro, sobre os quais se pode questionar se não serão antes cinzentos esbranquiçados, e aos quais se dá o nome de castanho para fincar uma certeza e não darem motivo a conversas que não levam a lado nenhum. 

Assim, se ao passar pelas ruas da aldeia aqueles que estão à porta da taberna, e nada mais fazem do que zombar com quem passa, perguntarem:

- Ó Ti Maria, de que cor é o burro?

Já a Ti Maria pode responder:

- Quem, o Castanho? Então não se está mesmo a ver.

E pode assim a Ti Maria ir, sem mais demoras, migar as couves que traz da horta para dar às galinhas. Porque também nas aldeias há quem prefira passar o dia a conversar em vez de fazer coisa alguma.

Desta forma, o nome do Castanho não é uma afirmação, é uma realidade. Bom, ele não é todo castanho. O focinho até é bem branco, assim como as auréolas em volta dos olhos espertalhões e a barriga que é de neve, mas de resto é de um castanho carregado de burro jovem e saudável, mantendo ainda alguma daquela curiosidade estonteada que, não se sabe ainda por que razão, ataca os burrecos nos primeiros meses das suas vidas.

Não vos vou falar da vida do Castanho enquanto jovem, pois só isso daria uma história completa, ainda que fosse como aquelas histórias onde não há fio nem meada. Não sei se percebem. É aquele tipo de histórias em que estão sempre a acontecer situações muito agitadas e emocionantes, e, contudo, não se percebe a razão de cada uma delas. 

Uma história tem tanto mais graça se ...

In Histórias para Crianças (2023)

domingo, 5 de março de 2023

de joelhos prostrados

mas que lindo menino
que da juventude tem a flor
no lindo rosto a inocência
e seja lá mais o que for

o que eu quero é ir brincar 
ao salta à barra ao ou conta ou amua
e contar até 31
com os meninos da minha rua

na rua é preciso cuidado
pois do homem do saco
o da tela entrelaçada
muito se tem falado

talvez por isso grite
a minha mãe da varanda
vem menino para casa
que já se faz tarde

mas se calhar ela não está
verdadeiramente preocupada
pois será apenas
que a sopa já está preparada

será isto um castigo
estava eu nas minhas sete quintas
não vejo a razão de tamanho alarido
saído de cabeça aflita

a sopa já está na mesa
e o teu pai sentado
vem daí que te digo
antes da refeição ter começado

ali está ele na mesa
então por onde andaste
pergunta com a sua voz forte
por entre névoa espessa

já estou farto de dizer
não uma nem duas nem três vezes
que das sopas verdes
a que mais me aborrece é a de ervilhas

come ervilhas que te faz bem
diz a mãe que o pai é agnóstico
dão-te força para correr
atrás da bola

com os pequenos todos zombam
porque podem e porque querem
que eu bem percebi que isto da bola
é pela forma das ervilhas

come a sopa
resolve ajuntar o pai
faz a vontade à tua mãe
que eu também fiz e por isso estou sentado

hesitante lá me vergo
senão fica o caldo entornado
dirijo-me para o meu trono de pau
de todos o mais elevado

o pai assenta com a cabeça
a mãe tem mais que fazer
pois está a terminar
o segundo prato

é o segundo que empurra o primeiro
que da cozinha vem um tal cheiro
a vida é tortuosa
ter de se saborear o que se desgosta

mas que aflição é essa a comer
até parece que te fizeram mal
atira o irmão mais velho
que não perde oportunidade de o pôr vermelho

quando me arreliam
arreliam-me mesmo
em particular este monstrelho
com a mania de já ter pelo

não chateies o teu irmão
diz o pai romano
que a paz que vem de cima
é aquela que mais se estima

está vermelho está
olha olha está vermelho
insiste o irmão
que a casa começou a trazer a revolução

resolve o pai calar
que há situações
em que mais vale deixar
a barragem se esvaziar

olha olha olha
come lá a sopinha verde
sorri o irmão com a porta aberta
muito à vontade para a desfeita

no ranger da cadeira me agito
sinto na boca a injusta ervilha
resistindo à garganta
dando razão à minha revolta

muitos anos de casa comum
são mais do que mil palavras
por isso sabe ler o irmão
o que do meu rosto se escapa

olho em volta e vejo um quadrado
de quatro paredes cercado
e ao centro uma mesa redonda
de familiares ladeada

o irmão não é dado a abstrações
sabe que o que vale é o imediato
aborrecer agora o miúdo
e depois sair para o mato

por isso dá a estocada final
é agora é agora
está todo vermelho
no nariz às orelhas

atiro-lhe à cara o prato
qual deus justiceiro
deixando o irmão espantado
e com a roupa suja para a moçoila

faz o pai uma consideração profunda
de quem sabe do que é o mundo feito
e que muito bem se resume
coisas de garotos são coisas de garotos

vem a mãe a correr da cozinha
e não vem para explicativas filosofias
pois sabe que na prática 
tudo deve ter solução rápida

logo ali ela decide
que a Deus devo prestar contas
depois da oração
ao senhor padre confessar

acabou-se o tempo das imprudências
que a vida também é feita de coisas sérias
coloque-se de joelhos
que chegou à idade das consequências

padre que fala assim
anda há muito nesta vida
por aqueles ouvidos já entrou tanto pecado
que desfaleceria a mente mais atrevida

mas eu que sou obstinado
ainda que de joelhos me tenha prostrado
não estou assim a ver
nada de que me sinta culpado

ofendeste pai ou mãe
não és amigo do teu irmão
mentes ou tens pensamentos com a mão
deixa o padre tudo explicado

de tudo o exposto
nada tenho de prestar a Deus
por isso me calo
perante o contraplacado que esconde o rosto

então
questiona o padre
perante a minha ausência
que atrás de mim já há gente a perder a paciência

pressionado entre duas paredes
e não encontrando culpas terrenas
ocorreu-me por desvario
o que já senti entre as pernas


domingo, 12 de fevereiro de 2023

O Homem que Vivia com Duas Formigas

Esta é uma história de um homem que vivia com duas formigas. Bem, na realidade, é assim que a história acaba, porque no início ele achava que vivia sozinho.
Vivia numa casa que não era grande nem pequena. Era térrea. Talvez pequena para casa térrea, mas se não fosse térrea, se fosse, por exemplo, um apartamento, até se poderia dizer que era jeitosa. Tinha uma sala, dois quartos e uma cozinha, para além da casa de banho, claro, que ninguém consegue imaginar uma casa sem casa de banho.
A porta de entrada dava para um pequeno jardim onde havia um portão que dava para a rua. E não fiquem logo a pensar que o jardim era grande e bonito. Quando se diz a palavra jardim é isso que nos vem à cabeça, eu sei. Por isso estou a alertar-vos, era mesmo muito pequeno e quanto a ser bonito já lá vamos, que isto de ser bonito não é tão simples como parece.
Se havia alguma coisa que o jardim tinha, era um canteiro. Sim, um canteiro. Um pedaço de terra rodeado por um pequeno muro por todos os lados. Pequeno de um palmo e meio, mais coisa menos coisa.
O muro separava o chão de cimento da terra que ficava dentro do canteiro. Terra só mesmo dentro do canteiro. E isso era uma coisa que o homem levava muito a peito. Essa era, pelo menos assim pensava, a principal razão pela qual havia o muro. Evitar que sujasse os sapatos de terra.
O homem tinha pavor, às vezes até se zangava com ele mesmo, de levar terra agarrada aos sapatos para dentro de casa. Assim se percebia sempre que entrava em casa. Esfregava os pés no tapete, uma vez, duas vezes, três vezes, às vezes até quatro vezes, colocando um pé de cada vez à frente e puxando-o com força para trás, também à vez. Fazia isso com tanta energia que abanava a cabeça em consentimento, concordando consigo mesmo, como que dizendo para si, é assim que deve ser, ter os pés bem limpos antes de entrar em casa.
Por isso lá estava o muro, para evitar que a terra passasse do canteiro para o chão de cimento e deste para os sapatos. E era só para os sapatos do homem, que ele não era de receber muitas visitas. Nem muitas, nem poucas, pelo menos durante a duração desta história não nos apercebemos que tenha recebido alguma. Mas, a sermos verdadeiros, também não podemos jurar que não as tenha recebido.
Reparem que enquanto estiverem a ouvir esta história, que é tão grande ...