sábado, 21 de dezembro de 2013

A Burlona do Amor, The End e Tao Te Ching

Dos testemunhos, até agora, alguma parra mas pouca uva.

Talvez o mais interessante seja o da Burlona do Amor, uma história que andou pelos jornais e televisões no início deste ano. Uma pesquisa no google permite obter um conjunto de notícias sobre este caso mas uma boa síntese destes testemunhos está na Deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERCS).  Que vão desde a caracterização da "burlona":

- "...nunca se contentou com pouco. Habituada a uma vida de luxos e mordomias, a burlona, de 44 anos, nunca quis trabalhar. Sem fontes de rendimento, tinha ainda o vício do jogo. Tudo graças aos homens que enganara".
- "…, de 44 anos, seduzia os homens para conseguir uma vida luxuosa. Aproveitou também para saldar dívidas de jogo".
- "A burlona, que até hoje nunca foi detida, adorava viajar. Passava longas temporadas em Inglaterra e as passagens de ano eram festejadas nas ilhas Canária".

Até à sugestão de alguma promiscuidade com o seu progenitor:

- "…, pai da burlona, sabia das farsas da filha. Era apresentado aos homens e mostrava-se conivente com todas as mentiras. Vivem juntos em Setúbal".

E, claro, a garantia policial:

- "Está a ser investigada pela PJ de Setúbal"

Estes são os testemunhos que presumivelmente bebem da fonte. Quanto aos testemunhos que se constroem sobre testemunhos, a deliberação descreve duas situações diferentes. A primeira é a transcrição de parte da entrevista onde o Dr. Moita Flores (F.M.F.), que, segundo o meio de comunicação social em causa, no uso das suas competências profissionais, traça o perfil psicológico alegada Burlona:

J.P.: Para já, uma história que também já é conhecida, a “Burlona do Amor” continua a ser notícia.
(…)
F.M.F.:  A “burlona do amor” é engraçado.
J.P.: (risos) A “burlona do amor” é bonito, não é?
F.M.F.: É bonito!
(…)
F.M.F.: E aliás, esta senhora com a prática que tem, se calhar também vai fazer carreira internacional, não é?
J.P.: (risos) Um dia destes está noutro sítio a fazer estas burlas.
F.M.F.: Ou a polícia que lhe deite a mão e para com isto de uma vez por todas porque a gente diverte-se, mas isto são crimes sérios. 
J.P.: São crimes sérios. Ó Francisco, nós estamos a sorrir e a contar, no fundo, a história, mas o que nos deixa… o que fez com que nós hoje trouxéssemos de novo este assunto aqui tem a ver com o facto de esta senhora até há algum tempo atrás… houve um jornal que disse que ela… portanto, publicou a fotografia dela inclusive e dizendo que a senhora estaria desaparecida ou a monte… fugida, digamos assim, e esse próprio jornal, enfim, desmentindo-se a si próprio dá conta se não estou em erro hoje, que afinal de contas ela está … é perfeitamente possível encontrá-la e fotografaram-na naquilo que julgo ser o local onde habita. Esta senhora não devia ser presa? Ou não devia ser inquirida pela polícia, não devia haver uma investigação...?
(…)
F.M.F.: As circunstâncias levam muitas vezes a que estes crimes fiquem sem queixa, não é? Mas quando tem queixa isto são crimes públicos, que obrigam a uma ação séria da polícia, não é? Agora, muitas vezes… porque eu sei que ela… julgo que sei, que ela já foi presa, um ou duas vezes e foi posta em liberdade, não é? Isto então é…, é mesmo o cacarejar sempre fora do galinheiro, está sempre à vontade. 
J.P.: (risos) Já se sente muito à vontade, não é?
F.M.F.: Consegue dar um golpe de 400 ou 500 mil euros, epá, pode tirar umas férias, quer dizer… Tira umas fériazitas porque sabe que depois haverá mais um otário que vai acreditar nas pernas, nas mamas, no sorriso, no fascínio, no olhar, na história. Ela tem as suas histórias.
J.P.: E encanta?!
F.M.F.: Encanta e encanta de tal maneira, que cantando os leva!
J.P.: (risos) Esperemos que mais ninguém, enfim, que mais ninguém… Aparece sempre um, não é? Mas está feito o alerta. A senhora está perfeitamente identificada”.
F.M.F.: E no ativo. (risos)
J.P.: (risos) Está por aí. Tenham cuidado, tenham cuidado. E portanto, esta matéria… seguramente um dia destes teremos mais notícias sobre ela e seguramente também teremos a informação, espero eu, que tenha sido de novo investigada pela polícia. 

Se neste testemunho se faz o espírito com pessoas de Fernando Pessoa, já a segunda situação está mais próxima de uma metafísica do testemunho, segundo Paul Ricouer. Nela o testemunho da "Burlona" sobre ela própria é inserido no "livro" de testemunhos:

- No dia 7 de março, o <jornal> publicou um direito de resposta exercido pela ora queixosa, tendo o jornal intitulado o Direito de Resposta de “Carta de ‘Burlona do Amor’”. No final do texto surge a seguinte nota: “Nota da Direção: o <jornal> esclarecerá amanhã alguns pontos sobre este direito de resposta”.

Ou seja, o testemunho da "Burlona" é usado para confirmar os testemunhos que "bebem" da fonte, e aqui começa a metafísica, pois o louco não pode provar que não está louco pois é louco.

Mas ainda assim, para encontrar uma metafísica do mal, é pouco. Por isso ocorre-me uma frase que li em The End, de Ian Kershaw, sobre o último ano da segunda guerra mundial: "goza a guerra pois a paz vai ser pior". Como é possível tal afirmação? De acordo com o autor deve-se à identificação entre o destino de Hitler e o destino da Alemanha. A não separação entre os dois levou ao fortalecer da resistência mas, eventualmente, à queda de ambos. Num poema do Tao Te Ching poderá estar alguma pista para perceber como se gera este inferno:

Quando o grande Tao é esquecido,
surgem leis impondo a justiça e a piedade.

Quando a esperteza e o intelecto se espalham,
surgem os hipócritas.

Quando os laços familiares entram em conflito
surgem o dever filial e os rituais religiosos.

Quando o país está em crise
surgem os indivíduos patriotas.

Parece ser neste copular entre o bem e o mal que se poderá encontrar uma metafísica do mal.

Continuo à procura de testemunhos.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Kizombas de sempre

Nisto das Kizombas há as más, as assim assim, e as de sempre. O Jeito Dela, http://www.youtube.com/watch?v=HyZmUf4yJu4, do Moçambicano Gasso, pertence ao conjunto destas últimas. Num estilo ultra-romântico, por vezes a roçar o pimba, e com um excelente video oficial, que faz lembrar a corrente expressionista do cinema Alemão, vejam-se os grandes planos dos rostos, deve ser dançada tomando as respetivas pausas.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Inferno

Nada há mais indicador da pobreza da mente do que não saber fazer espírito senão com pessoas.
Livro do Desassossego, Fernando Pessoa

Num dos seus contos, Italo Calvino descreve um planeta terra vazio onde os mais variados objetos vão caindo do céu. Numa parábola à criação, os seus dois únicos habitantes vão zelosamente juntando o que encontram - fogões, vasos, árvores, … -  e meticulosamente arrumando cada coisa no seu lugar. Também eu não resisto à tentação a ir encaixando o que vou encontrando.

Agora que se aproxima do fim o meu terceiro livro quero abraçar algo mais ambicioso, uma narrativa sobre o Inferno. Para isso tenho vindo a juntar pequenos apontamentos que aqui apresento como se uma ordem tivessem.

Se um início houvesse, diria que ocorreu à mais de três anos, quando me foi anunciado o Inferno. Daí a imaginar todas as possíveis combinações de Inferno foi um passo. Depois, foi o tempo de perceber da sua inevitabilidade. Então juntei-lhe a citação que ouvi há dias de Alberto Caeiro: sou do tamanho daquilo que vejo. Desta conjugação entre o que aconteceu há três anos e o que ouvi há dias nasceu a intenção de escrever um livro sobre o Inferno.

Contudo, não basta ter os olhos abertos e observar o que nos cerca, é necessário ter uma estrutura. O primeiro passo foi a procura de um condenado ao Inferno. Encontrei La Gloire num livro de Boris Vian lido na adolescência. Condenado a recolher cadáveres com os dentes do fundo rio em troca do ouro dos habitantes, La Gloire encarna um Inferno aquático sem fogo.

Mas para haver um Inferno tem que haver um conceito de mal absoluto. Para isso procurei o conceito de bem absoluto no trabalho de Paul Ricouer sobre a hermenêutica do testemunho. De acordo com Ricoeur existe uma metafísica relativamente ao testemunho que vai para além da experiência e da ideia do bem. Acorreu-me então que o livro poderia ser feito apenas de testemunhos sobre o condenado para daí surgir uma metafísica do mal.

A seguinte questão coloca-se sobre quais são os testemunhos que contêm essa capacidade metafísica de geração da consciência do mal absoluto. Lembrei-me a seleção feitas dos Evangelhos e a sua depuração dos apócrifos. Assim, uma narrativa sobre o Inferno poderia descrever o processo de seleção dos testemunhos verdadeiros, aqueles que consubstanciam e emanam o mal, na perspetiva de uma das pessoas incumbida dessa seleção. Focar-se-ia o livro em uma única pessoa e na sua (re)leitura dos testemunhos, as dúvidas que se lhe levantam, e as estratégias e modelos mentais subjacentes à seleção que vai construindo.

Finalmente, recentemente li a frase de Fernando Pessoa, com que encabeço este texto: Nada há mais indicador da pobreza da mente do que não saber fazer espírito senão com pessoas. Creio haver alguma contradição entre a pobreza do espírito feito apenas com pessoas e a metafísica do testemunho, mas aceitei este como um desafio que poderá enriquecer o livro. Contudo, para poder continuar gostaria de obter um extenso conjunto de testemunhos do mal sobre os quais possa trabalhar. Para isso peço aos meus leitores que achem que têm histórias que valha a pena contar que me enviem. Estou particularmente interessado em testemunhos que sejam construídos sobre testemunhos, em que não tenha havido contacto direto com a origem do mal, mas que possam conter essa experiência metafísica emergente da interação com um testemunho.

Agradeço todas as contribuições que me possam enviar para Antonio.Rito.Silva@gmail.com. Obrigado.


domingo, 24 de novembro de 2013

Dissensus

Saio do Everest Montanha e decido caminhar para deixar discorrer pelos membros os calores que alguns pratos Nepaleses emprestam ao corpo. Ao passar pelo Júlio de Matos vejo-me na obrigação de agarrar uma folha de papel que esvoaçando quase se me entrega nas mãos. Nesta folha leio, escrevinhado, as atuais notícias da minha sanidade são tão exageradas como as, anteriores, acerca da minha loucura.

Estaco, e, enquanto o ar frio da noite me entra pelo nariz num brado de refrigeração solicitada pelo corpo, ocorre-me que este deve ser mais um daqueles ineficazes gritos com pretensões literárias, em que o grito empobrece a pretensão e o estilo literário abafa o grito. Foi com certeza escrito por um dos loucos que aqui habita, penso.

Entretanto, começa a tomar conta do meu corpo uma sensação de dissensus. Não sei se se deve à folha entre mãos ou à comida que ingeri. Nesta imobilidade dou comigo a imaginar o psiquiatra deste pobre louco, entre compêndios, gerando o consensus, agarrando-se a todos os possíveis factos e, em desespero de causa, criando, aqui e ali, o que faz falta. Imagino também os sucessivos construídos universos de que o louco se entretém a divergir.

Retomando o passo, vou-me afastando e sinto comiseração pelo pobre psiquiatra.

domingo, 29 de setembro de 2013

Memória

(publicado em 24 de Setembro de 2013)

O que seria da memória se não fosse o esquecimento? Tal como na senilidade o esquecimento nos enche das texturas da memória também neste livro procurei juntar tudo o que vou encontrando por entre o que já não recordo. E não posso negar ter abrilhantado, com mais ou menos cuidado, o que vai surgindo, tal como a memória o faz para não se deixar cair no abismo olvidar.

Mentiria, também, se dissesse que não há uma teoria por detrás, uma linha onde penduro esta memória. Sou incapaz de escapar à obsessão da ordem, mesmo quando o nego. Por isso, este pequeno livro procura fazer um todo, esgotar a memória, fechar nestas páginas tudo o que pudesse vir a recordar. Mais uma vaidade de duvidosa concretização, mas se não fosse assim este objeto não existiria. Agora que desisto do todo, para o livro poder existir, o que aqui não fica com certeza se virá a manifestar debaixo de outros nomes e de outras formas, pois para isso serve a memória.

Amazon: http://www.amazon.co.uk/Mem%C3%B3ria-Portuguese-Ant%C3%B3nio-Rito-Silva/dp/1492363774

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Conjugar o verbo Querer na China Capitalista Comunista Budista Taoista Confucionista

Presente:
Eu não quero
Tu não queres
Ele não quer
Nós queremos
Vós não quereis
Eles não querem

Futuro Indicativo Capitalista:
Nós queremos ser ricos
Nós queremos ser ricos
Nós queremos ser ricos
Nós queremos ser ricos
Nós queremos ser ricos
Nós queremos ser ricos

Pretérito Perfeito Comunista:
Nós quisemos um mundo novo
Nós quisemos um mundo novo
Nós quisemos um mundo novo
Nós quisemos um mundo novo
Nós quisemos um mundo novo
Nós quisemos um mundo novo

Conjuntivo Budista:
Se eu quisesse nós não quereríamos
Se tu quisesses nós não quereríamos
Se ele quisesse nós não quereríamos
Se eu não quisesse nós quereríamos
Se vós quisésseis nós não quereríamos
Se eles quisessem nós não quereríamos

Pretérito mais que Perfeito Taoista:
Nós quiséramos suprema harmonia
Nós quiséramos central harmonia
Nós quiséramos preservar harmonia
Nós quiséramos harmonia celestial
Nós quiséramos eterna harmonia
Nós quiséramos completa harmonia

Imperativo Confucionista:
Queiramos nós antepassados
Queiramos nós lealdade
Queiramos nós regras
Queiramos nós estabilidade
Queiramos nós ordem
Queiramos nós harmonia social

Interrogativo Dezasseistista:
Porquê deixar de eu querer e ainda assim fazer?

17 de Setembro de 2013

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Ainda os mesmos Bichos

Ainda os mesmos Bichos (publicado em 8 de Agosto de 2013)

O que gosto em Bichos de Miguel Torga são as frases que não esbanjam e o Portugal de Trás-os-Montes, que suspeito não será muito diferente de uma Beira Baixa que conheci. Uma terra que obrigava homens e animais a serem bichos. O cão, o gato e o burro que por ali andam fingindo ser nossos.
Por acaso, surgiu a possibilidade de o reler.
Desse reencontro com os Bichos, escritos aos pedaços, um por cada conto de Miguel Torga, mais três outros à laia de fecho, surgiram estes fragmentos que agora aqui junto. A sua releitura mostrou-me que já tinha esquecido o suficiente para agora não me atrever alterá-los para além de algumas ligeiras pinceladas. Tal como os bichos, podem ainda fingir ser meus, mas, já não me pertencem.
Outros bichos haverá, mas no momento, que se repetiu no correr dos dias do Outono, foram estes que encontrei. Agora, aqui juntos, gostaria que a leitura de cada um seja um relampejo imediatamente seguido de um esquecimento, como as manifestações dos bichos.
Neste rearranjo voltei a verificar que gosto destes bichos. Espero que também goste.

Amazon: http://www.amazon.co.uk/Ainda-mesmos-Bichos-Ant%C3%B3nio-Silva/dp/1491071893