sábado, 22 de setembro de 2012

humildade

um dedo do pé
um dedo do pé afunda-se numa cama
uma cama no meio de um quarto
uma cama no meio de um quarto onde um dedo do pé
um quarto dentro de uma casa
um quarto dentro de uma casa onde uma cama
uma casa num prédio
uma casa num prédio onde num quarto
uma escada rasga um prédio
uma escada rasga um prédio e leva de uma porta a uma casa
uma rua onde uma porta
uma rua onde uma porta se abre para uma escada
um bairro de gente
um bairro de gente onde uma rua
uma cidade cheia
uma cidade cheia de um bairro
um país com mar
um país com mar onde uma cidade tem um nome

um país com mar e uma cidade cheia com nome e um bairro de gente onde uma rua tem uma porta que se abre para uma escada que rasga um prédio e desemboca numa casa onde num quarto sobre uma cama um dedo de pé se afunda com um imenso peso

- Humility - Wim Mertens

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Evondres

Tomar o avião
Primeiro em pequenas doses
Para criar habituação
Depois em cruzeiro
Para cumprir o roteiro

NorthFields
Green Park
Southwark
Bermondsey
Canary Wharf

Wharf, Wharf, Wharf disse Canary
Nestas docas se fizeram navios
That, That, That disse Cher
Deste porto financeiro
Nunca partiremos à deriva

Comer sushi no chão
Também em pequenas doses
Para criar habituação
Aqui entre a terra e o rio
Por vezes sente-se algum frio

Heron Quays
Canary Wharf
West India Quay
Shadwell
Tower Hill

Do tapete rolante
Veem-se as jóias da coroa
Espantadas caras
Passam pelo andor
Num grande fervor

Monument
Cannon Street
Mansion House
Blackfriars
Westminster

Seis mulheres teve o oitavo
E como eram todas giras
Ficou tão de pantanas
Que teve de ir à igreja
Separar-se

E a Zabete?
Num tempo de shake e inspiração
Tinha ciúmes da Maria
Que de uma outra religião
Tinha a cabeça mais bonita

Cortem-lhe a cabeça!
Qual delas Vossa Senhoria?
Aquela que ela ainda agora tinha
Que é dela, com mil raios
Rolou por aí abaixo

Espeta-a num pau
Que é para aprenderem
A pensar com a cabeça
Não vão eles achar que a minha
É como a dela com certeza

Westminster
Embankment
Charing Cross
Trafalgar Square
National Portrait Gallery

Pintou a avó nua
Com tal crueza
E delicadeza
Que está agora na Gallery
Exposta

O Mexicano arde na boca sem dó
Queima que é um disparate
Apaga o fogo com 7up
Ufa, que alívio, agora já rio
Mas ainda tenho os lábios em desvario

Charing Cross
Piccadilly Circus
Leicester Square
Convent Garden
Holborn

1 morto, 2 morto, 3 morto, 4 morto, 5 morto, 6 morto, 7 morto, 8 morto, 9 morto
Diz um morto
Com um ligeiro sotaque egípcio
Would you like a cup of tea?
Very British, indeed

Holborn
Oxford Circus
Green Park
Victoria
St. James Park

Focinho pontiagudo
E cauda comprida
Nas tardes de amendoins
O esquilo vai à mão
Mas a mão não chega ao esquilo

St. James Park
Westminster
Embankment
Temple
Mansion House

Modern art is like

An unfinished sentence
You have to fill the gaps
Tate on you brother

Que saudades
Do Vietnamita
Da beef noodle soup
Mas eu noodle quero
Queres ou não queres?

Mansion House
Embankment
Oxford Circus
Regent's Park
Baker Street

Aqui também há uma Madame
Feita da cera
De todas as formas
Com que eu quero ser fotografada
Será Mrs, Miss ou apenas Ms?

17 de Setembro de 2012

domingo, 2 de setembro de 2012

Dia 15 - The Dead

Abandonámos o local com um cansaço feito de músculos descontraídos. A descida era feita do descair do corpo. Descíamos aos sobressaltos. As distâncias entre nós iam variando, formando-se um corpo desengonçado que parecia descer a montanha aos trambolhões controlados. A cada momento prestes a lançar-se no abismo, a cada momento a se agarrar de novo ao chão.

Observado com mais detalhe, podia-se imaginar neste corpo uma longa coluna de onde se prendiam semi-arcos. Era entre estes semi-arcos que nós nos movíamos e que nos impediam sair de dentro do corpo que configurávamos. Não, de facto, nós eram os semi-arcos e os nossos movimentos marcavam o respirar ofegante de um animal acabado de ressuscitar.

Era a cabeça, feita de um enormes buracos sem olhos, que nos atirava para a frente. As gigantescas mandíbulas, premiadas de uns dentes que já foram úteis, dão ao animal um ar sedento de vida. A cabeça bamboleia-se de um lado para o outro, de cima para baixo, e pelos buracos dos olhos passa tudo o que está à volta. A conjugação dos buracos nos olhos e das mandíbulas abertas dão ao animal uma expressão de incredibilidade.

Eveline caminha com os olhos nos olhos do animal, procurando ver tudo o que ele vê. Há na sua cara uma expressão de contentamento que não lhe tínhamos visto antes. A sua respiração é consonante com a respiração do animal e, caminhando entre nós, é o seu movimento que marca a deslocação lateral daquela desmedida massa. Sempre que chegamos a um ponto, já ela se move na direção oposta, levando-nos atrás.

O caminhar de James é marcado pelo alheamento de Eveline. Inicialmente ainda procura olhar pelos olhos do animal, mas acaba a observar o corpo que nos envolve. É um extraordinário monumento que avança no tempo e onde James tenta encontrar o seu lugar. Vai fazendo isso experimentando diferentes formas de andar. Aquela que lhe parecia mais óbvia era a de Eveline, mas ela, ou o corpo, estão sempre um pouco depois, ou um pouco antes. Enquanto vai procurando acertar, dá então consigo a imaginar como teria sido imponente esse animal, como a sua presença deveria impor respeito e forjar vontades. Mas de tantos desacertos, James começa a ficar para trás. Sente passar-lhe pelas costas um fio frio, como um arrepio. É a longa cauda do animal que passa por ele. Já sem obrigações fica sentado a observar-nos na descida.

Viro-me e pergunto-lhe, Então James, não vens?

- Inspirado em The Dead de James Joyce, num esqueleto de dinossauro no Natural History Museum  e nos monumentos funerários no British Museum em Londres.