terça-feira, 23 de agosto de 2016

Gravidade – Gonçalo

O Gonçalo atirou-se por uma janela. Sem dúvida um ato de alguma gravidade. A gravidade óbvia associada ao estado do corpo após se estatelar lá em baixo, no pavimento, depois de uma queda de vários andares, mas também a gravidade que pode resultar de um ato quiçá irrefletido e de que Gonçalo não terá com certeza avaliado todas as consequências. Atingirá o corpo de Gonçalo alguém lá em baixo? Isso seria grave. E se alguém, mais impressionável, perder o controlo do automóvel ao ver um corpo em revolução por aí abaixo, e atropele um outro que se quedou no meio da passadeira a observar boquiaberto Gonçalo às reviravoltas. Se calhar esse outro estacou pois ficou com uma sensação de o conhecer de qualquer lado. Sim, pelo menos do que viu no ar, pois uma vez no chão Gonçalo ficou menos reconhecível, para além de uma amálgama espectral de órgãos e sangue. Terá porventura de se recorrer à ciência para das partes se reconstruir o todo e alguém poder ser contactado para vir buscar os restos, para dar-lhes outro repouso que não seja a calçada portuguesa. E qual será a gravidade do atropelamento deste transeunte, vítima da sua obsessão em analisar catástrofes? E de todos aqueles que depois de identificado o trambolho voador irão criar nos seus cérebros associações para dar um sentido aquela insanidade? Terá ela um caráter mobilizador que faça com que outros se venham a atirar de outros edifícios, pois o fogo puxa pelo fogo? Isso seria muito grave, não seria? Não! Digo-vos eu que sou a gravidade. O que são setenta e poucos quilos desequilibrados por cinco gramas de peso que levam um corpo a precipitar-se de uma janela? Mesmo que como consequência disso magotes de outros corpos se atirem contra a terra mãe, sonhando, ou não, com virgens no além? Nada, repito! Eu estou habituada a mais, muito mais. Forças proporcionais ao produto das massas, que podem ser gigantescas, por isso não me deixo impressionar pelas pequenas quedas. Dir-me-ão que não são massas quaisquer, são massas com consciência, mas se procurarem bem na minha equação não encontrarão lá a consciência. Suponho que alguns, mais pitagóricos, dirão que ela está encerrada na constante de gravitação, porque é universal e permite estabelecer uma igualdade. Mas, não me venham falar de igualdades quando um desmiolado se atira inconscientemente, sim inconscientemente, de uma janela, sem outro fim que não seja o chão. Insistirão esses metafísicos que são os atos de inconsciência, apanágio dos profetas e dos santos, que despertam as consciências. Poderá ser que Gonçalo durante a sua queda tenha sido alvo de alguma iluminação, tenha até descoberto uma fórmula revolucionária que explique o sacrifício dos corpos, em que surja como variável a dimensão do vazio no peito e vários fatores de decaimento dos órgãos, e que, maravilha da ciência, esta nova equação se unifique com a da gravidade, explicando a queda. Tretas! A força é diretamente proporcional ao produto das massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância. Pum.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Pequeno político – Humberto

Nesta matéria quem tem uma opinião formada sou eu. É fácil ter opinião, mas nem todas as opiniões são adequadas. Uma opinião deve marcar presença, para ser notada, senão de que serviria ter opinião, e ao mesmo tempo não incomodar, e muito menos ofender, para além do estritamente necessário. Não é uma arte fácil, mas aprende-se, o Humberto que o diga. Cedo sentiu a convocação, ainda no secundário, para a associação de estudantes. Porém no início era mais a vontade que a perícia. Humberto abria a boca e lá saía a minha voz desconectada como se de um ato de ventriloquismo se tratasse. Recordo que o Romeu ainda observou com graça, Humberto, pareces um político a falar. Pobre Humberto, não estava à espera, perdeu o controlo e calou-me, começando ele a falar. Disse, pois... pois..., e pior, repetiu o Romeu dizendo, um político. Felizmente lá voltei eu a retomar o controlo e juntei-lhe mais esta matéria, e aquela, e aqueloutra, coisas de orçamentos, gestões, e acima de tudo as regras que nas suas nuances pregam partidas. Mas serviu-lhe de lição. A partir daí percebeu que nada poderia ser inesperado. Pega-se na coisa, seja ela uma pergunta ou um mero comentário, e começa-se a fiar, criando um novelo que vai embrulhando o que não interessa, deixando de fora a mensagem, saliente e luzidia. Essa é a regra principal que a todos recomendo, se não há uma mensagem mais vale estar calado. Nas reuniões identificamos facilmente os que falam porque gostam de se ouvir, ou pior, porque acreditam piamente no que dizem, daqueles que pragmaticamente dizem o que é necessário para atingir os seus objetivos. Por isso a mensagem não deve conter a verdade, como julgam os crédulos, mas sim o que é útil. Nisso, mesmo enquanto aprendiz e inábil, Humberto nunca esteve com os primeiros, sabia claramente que o jogo bonito e vistoso pode encher o olho, mas não traz vitórias tranquilas, daquelas que perduram. Esta é a segunda verdade que podeis aprender do pequeno político que está dentro do Humberto, a vitória a que deveis almejar é a de secretaria. Às vitórias de que não se percebe a origem não é fácil achar o fim. Não foi sempre um aprendiz o Humberto. No início ainda falava a duas vozes, daí a observação de Romeu, e eu andava um pouco aos trambolhões lá dentro, pronto para responder à chamada sempre que Humberto queria dar um a opinião, marcar uma diferença, enfim, marcar a posição. Com o tempo deixámos de ser dois e já não se percebia quando falava um ou o outro. Digamos que é isso o crescimento, moldarmo-nos por dentro com fantasias que com o tempo se tornam reais. Existe, contudo, nesse período de folga entre a fantasia e o corpo, uma visível falta de coerência que pode trazer desconforto. No caso de Humberto, o fim do namoro com Catarina não é alheio ao reparo de Romeu. Catarina tinha apenas 15 anos e não ficou indiferente. Humberto ainda tentou. Quase sentiu, ou simulou, o sofrimento da perda, tão normal nos adolescentes. Falou com ela, justificou-se, mas o fascínio nestas idades é puramente mágico, e aqui entre nós, Humberto sentiu um grande alívio.