sábado, 10 de setembro de 2022

Hilário Mendes

Soube da exposição pelos jornais. Insistiu com o filho. Queria ir ver a da inconveniência. O pai já tem 96 anos, não deve ir. Mas não está mal para a idade. Com uma perna mais perra do que a outra, apoia-se num lustroso bastão de carvalho de pega em forma de coronha e ponteira de borracha para não resvalar. Tirando o andar, que intervala entre o saltitar desequilibrado do membro mais falto e a determinação, impulsionada pelo braço parceiro, do embater da borracha no chão, suavizou com o tempo. É agora um velho escorreito, nem gordo nem magro, onde os músculos passaram por um prolongado processo de combustão em fogo lento, deixando-lhe as carnes pendentes brancas de uma elegância macia. Até a pele, que ondula como bolsa contentora, possui um brilho agradável. Tem a longevidade dos que se fazem de dentro para fora. Desfez-se intimamente devagar, como acontece a todos os que resolvem resistir aos sobressaltos, deixando o envelhecimento a tão-só o papel dos genes. É verdade que teve de se reformar cedo, mas valeu-lhe a ajuda de uns amigos, algumas vendas à consignação, que têm tanto de certas como de compromisso, uma reforma que chegou atrasada, e algum dinheiro que tinha de sobra, e que tal como as carnes soube fazer preservar às intempéries da inflação. Por isso, habituado a ter passado metade da vida a calcorrear, uma tarde, com a determinação do malhar da bengala no chão e o apoio incondicional da outra perna, num dia de semana, com o filho e a nora fora de casa, meteu-se à estrada e rumou à avenida da liberdade. É verdade que não se acabrunhou com os dizeres no grande vidro da entrada, que a qualquer outro como ele poderia servir de aviso à navegação, ainda que se possa ter ligeiramente emocionado com o Governo da Nação. Lá dentro, com um hábito de que não tem memória, percorre primeiro com o olhar para retratar quem está, e só depois se debruça sobre os expositores. Os papéis têm quase sempre dois nomes apenas, o do juiz e o do ajuizado. Olha cá está o capitão Severino, era um homem reto, já não há homens assim, o que terá sido feito dele, ainda mantivemos o contacto durante uns anos, a sua esposa era uma excelente senhora, deixa lá ver do que o acusam... mas queriam o quê, que abdicasse dos seus princípios... major Magalhães... não conheço, a memória também já não é o que era, não, não, bom, havia um Magalhães na Guarda, não, não deve ser isto é sobre um livro, lá era mais os jornais da região... muito bem, como queriam que se publicasse isto, a tecer loas ao adultero do Delgado, só um idiota deixava passar uma coisa assim, um trabalho a ser feito deve ser bem feito... eh, eh, um dos organizadores também cá tem um seu folheto, sempre com questões, ah, a vaidadesinha, a vaidadesinha vem sempre ao de cima, apanhávamos muitos assim, não me passou pelas mãos, na altura devia ser um fedelho e com certeza chamava livro a isto, agora parece um doutor a falar na televisão. Puxam-lhe pelas calças do lado manco, uns olhos grandes de garoto perguntam-lhe, o senhor também é deste tempo, sim, sim, sou, mas eu era só telefonista, responde com um sorriso.