domingo, 24 de março de 2019

Mouco segundo Armindo, por umbertsetentaoito

Eu que já tive vários homens nos braços, que já os enlacei com os meus seios, que já lhes fiz perguntas sobre pais e irmãos que nunca conheci, que nunca quis conhecer, sempre saí da cama julgando-me mais rica, embora um pouco envergonhada dos estratagemas a que o meu cérebro recorre para saber o que existe para além do seu corpo, mas assim que coloco os dois pés no chão, e passa a breve tontura do levantar repentino, logo ele, lá em cima, se apropria com vaidade e desfaçatez, se julga dono, e se veste com eles, como se os momentos deitados não bastassem para preencher a ausência. Duvidei, contudo, que assim pudesse ser entre dois homens, em que se carece do lampejo dos seios, pelo que de tal o meu corpo silenciosamente se convenceu em contraponto à arrogância do cérebro. Mas no momento em que, na galeria iconográfica Pinote, dei com Mouco segundo Armindo, por umbertsetentaoito, colocado entre os dois Hilários, ocorreu-me, com o desencanto natural de quem perde um pouco do ser, que talvez estivesse enganada. E ao ícone cerebral, produzido com a ajuda do software da Mindicon, parecia mesmo faltar qualquer possibilidade de interpretação artística, assemelhando-se mais uma notícia de telejornal, do início do século, sobre violência doméstica, uma intermediação de mazelas físicas e comentários dos vizinhos. Bastante fragmentário, feito de recortes irregulares de vídeo sobre telas e-ink old, todas elas amarelecidas, como o papel gasto, num tom que só o papel de jornal parece possuir, uma vez que é a única obra escrita que não nasceu convencida da sua imortalidade, em que o jornalista escreve a notícia de hoje já a pensar na de amanhã, que com intenção mais perene se soma e subtrai num livro de deves e haveres. Sim, é essa vicissitude que nos convence da veracidade da obra. Num dos recortes, onde ao cimo ainda figura a letras maiores a palavra Gazeta, surge a foto do Mouco, de perfil, desfazendo-se de tal forma que se duvida se o pedaço de orelha foi comido pelos porcos se pelo tempo. A notícia fala dos maus tratos cometidos sobre a mulher e o filho, como se estivesse convencida da simultaneidade dos acontecimentos, como se tivesse sido notícia. Já num outro recorte, sobre o mesmo fundo amarelecido, o Mouco golpeia, a preto e branco, ao ralenti de uma película antiga, e ao som da máquina de projetar, como num filme mudo, golpeia repetidamente um Pinote imóvel, onde o sangue que lhe sai do rosto vai progressivamente cobrindo a película de cinzento, borrando ambos, até que tudo fica negro de luz. Recomeça então de novo o recorte, como um qualquer vídeo com milhões de visualizações, os mesmo perfis apagados, mas ainda incólumes, recomeçando o corpo de Pinote a fragmentar-se até cobrir de novo a película de negro. Abaixo, uma caixa de comentários, ainda mais breves que a notícia, embora imensamente mais intensos, com a força das convicções. Diz-se que foi com malícia que umbertsetentaoito colocou o seu ícone entre os Hilários, como se quisesse que estes lhe vestissem a pele.