sábado, 28 de outubro de 2017

plosAires – Zalo

Lá vai o Zalo plosaires! Lá vai o Zalo plosaires! Grita um grupo de rapazes, distintamente chefiados pelo Armindo, um grandalhão de calções de alças, desproporcionados para o corpo que cobrem, filho do Mouco, exemplarmente educado pelo pai numa dura disciplina de porrada sem eira nem beira, isenta de qualquer sentido lógico, ainda que o pai anuncie cada nova sessão com irrefutáveis argumentos, e mesmo que o miúdo insista em ensaiar umas voltas em torno da mesa, puxando mais pelo progenitor do que abrindo a porta a uma qualquer escapadela, enquanto a mãe observa com algum alívio por para já não ser chegada a sua hora, e de quem o professor desistiu de educar, desde que quase teve uma síncope depois de lhe arrear com a régua no traseiro, pois não arrancava da tabuada do dois, enquanto o matulão mostrava um risinho escarninho para o resto da classe, ainda insistiu o educador, ah, estás a rir, disse, aumentando a intensidade e frequência da tábua de madeira, até que finalmente percebeu quanto os seus métodos pedagógicos estavam aquém dos do progenitor, resolvendo passar a tratá-lo com a um adulto, então quando vais trabalhar, disse-lhe, já numa linguagem de gente crescida, e contudo o Armindo gostava da escola, era sempre o primeiro a chegar e o último a sair, no recreio um rei, pondo em prática o que aprendia em casa, que na sala de aula divagava, o que irá naquela cabeça, pensava o professor, sonharia quando pairava os olhos pela janela, mas isso era o professor, dado a poesias, desterrado para aqueles lados por imposição do destino, que até a lei da régua surgiu por adaptação à realidade, realpolitik, chamou-se lhe mais tarde, que esta gente já chegava à escola formada, com frequência sazonal, modelada pelas colheitas e pelo tempo, com a chuva eram mais assíduos, não o Armindo, que vinha sempre, o pai não era muito dado a obrigações, nem um pedaço tinha para si, que os outros sempre se iam dedicando a um cantinho, próprio ou emprestado, muitas vezes nem emprestado, consentido, mas a escola era tudo para ele, sempre que chumbava ficava mais próximo do professor, inconscientemente percebendo a teoria dos dois poderes, o da força do conhecimento e a do conhecimento da força, por isso facilmente formou uma pandilha, mesmo que nas regras de admissão fizesse parte levar uma coça do líder, mas era uma única vez, à entrada, era da praxe, Roma e Pavia não se fizeram num dia, e depois já se podia começar a meter a colher na sopa, desgraçados são os que não vão em grupos, como o Zalo, filho de pastor, que nem à escola ia, ceifeiro é homem, pastor é pastor, não se dá com gente, não vai à taberna, não opina, não comenta, pasta, cheira a bicho, não cheira a suor, e é opinião formada a superioridade do vinho sobre o leite, o próprio senhor doutor disse, o vinho dá de comer, portanto, coitado do Zalo, despojado de ambos os poderes, quando na mirada desta pandilha, continua caminho como se não fosse nada, mas desta vez, talvez por ser início do dia, talvez por uma sinergia de grupo ainda por perceber, vinham mesmo por ele, não fosse a Joaninha lhes ter gritado, deixai o Zalo em paz!

domingo, 9 de julho de 2017

Selva – Madalena

Certas mulheres são como a selva, são dos aventureiros. Dos aventureiros? Questionais-me vós. Não será que queria dizer dos aventurados, sugeris. Mas qual é a diferença? Pergunto-vos. Quem pode estar mais convencido de possuir o dom da ventura que o aventureiro, para se lançar ao desconhecido, desbravando luxuriante vegetação, à catanada, se necessário, na demanda de safiras, esmeraldas, rubis, diamantes. Todas pedras em bruto, à espera de serem delapidadas, libertarem-se da aspereza da natureza para rodopiar em refrações sobre a palma da mão, despertando a cobiça refinada, e serem possuídas pelos bem-aventurados. Ah, pelos aventurados, não pelos aventureiros, exclamais vitoriosos. A teimosia não vos trará boa fortuna e, nesta matéria, por aqui me fico. Repito, certas mulheres são como a selva, são dos aventureiros. E vede, as vossas interrupções fazem-nos chegar atrasados. Madalena e Romeu já não estão sentados lado a lado no sofá longo. Madalena atentamente ouvindo Romeu, desejando que no desfolhar da conversa vão surgindo as referências, à pele dos ombros, ao canto dos lábios, à curvatura das nádegas. Não, já não falam pausadamente. Melhor, Romeu já não fala. Madalena agita-se em pé, impondo-se intransponível para um Romeu que a olha apreensivo, sentado. Estou farta de te ouvir falar do Tavares. Nos últimos tempos quando vens ter comigo só falas do Tavares. E eu? Pergunta, apontando simultaneamente com ambos os cotovelos para as ancas bem rodadas, ao fundo de um ventre que insiste em se esconder, como o parente pobre, e envergonhado, do corpo de Madalena. Sabes que não é bem assim, Romeu procura tranquilizá-la. Não? Mas falaste de alguma outra coisa desde que aqui chegaste? Que o Tavares te fez a folha. Que devias ter suspeitado. Que bem te avisaram. Que as sugestões dele apenas te prejudicaram. E eu, aqui sozinha, à tua espera, com vontade que viesses, e agora essa conversa. De certeza que não é disso que falas com a Catarina. A última palavra é puxada por um soluço que desata em choro. Rapidamente as lágrimas lhe percorrem as faces, precipitando-se do queixo para a camisola onde deixam marcas que colam a blusa de alças ao corpo. Romeu sente-se incomodado pela erupção daquele ambiente húmido que tenta se intrometer nos seus pensamentos, se soubesse não tinha vindo. És um egoísta, diz Madalena, numa forte bátega de lágrimas que agora alcançam mais longe por se lançarem dos lábios retorcidos. Se soubesses os homens que estariam aqui se eu quisesse, atira já em desespero de causa, dado o silêncio de Romeu. Alguns nem sequer és capaz de imaginar, e tu preocupado com o Tavares, diz num riso escarninho que enche Romeu com os calafrios do desconhecido. Não devia ter vindo. O apartamento tornou-se inóspito, tem que sair rapidamente dali. Levanta-se e diz, tu hoje estás impossível, assim não se pode conversar contigo. Num instante está do lado de lá da porta, descendo pelas escadas, vai pensando, a culpa disto tudo é de terem cancelado a novela, e esse Tavares vai ver como elas doem.