quarta-feira, 29 de agosto de 2012

14 dias a caminhar

Estes 14 dias de caminhada, mais ou menos imaginária, foi escrito entre os dias 1 e 16 de Agosto de 2012 ao passo de um conto de Dubliners de James Joyce e de recordações de lugares:

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Dia 14 - base, fuste, capitel,

À nossa frente, as torres de granito saindo de uma luva de neve sem dedos. Finalmente chegámos. Nem queríamos acreditar. Quatorze dias. As torres eram massivas rochas que se estreitavam lado a lado.

Estendemos-nos no chão, cada um para o seu lado. Entre nós um mar de pedras roliças. Virando a cabeça víamos os corpos entrecortados pelas pedras. Eram corpos deformados por inesperadas barrigas.

James via as pedras das torres a entrar pelas nuvens que se desfaziam quando as tocavam. Esticou-se um pouco mais. Os pés calçaram uns sapatos de pedra. As mãos enviaram-se dentro de umas luvas castanhas. A cabeça estava fixa nas torres. Não pestanejava, mas de dentro da sua boca saía um corpo azul, irregular, que ía variando de tonalidade e forma com a luz do sol e a sombra das nuvens. O tamanho do corpo aumentava conforme respirava.

De Eveline não se via a cabeça. No seu lugar um pedregulho, um pouco maior que os restantes. Entre este e as pernas, ausentes pela presença de uma outra pedra, uma barriga onde se notava a respiração. A respiração era irregular e começou a propagar-se ao solo. Primeiro foram as pedras que escondiam Eveline que começaram a tremer, mas depois o tremor começou a propagar-se em círculos concêntricos.

A corpo azul reluzente de James e a respiração de Eveline tomaram conta de todo o local. As pedras começam a rebolar e a saltar. Misturam-se com o corpo azul. O azul tingiu-se de castanhos. Agora a sucessão de tremores já não deixa as pedras regressar ao chão, atirando-as cada vez mais alto. Saltam no topo das torres, como capiteis. No chão, volto a ver os corpos de James e Eveline por inteiro. De onde me encontro, parecem suster as torres.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Dia 13 - Língua

O que se passou no dia de hoje, ou deverei dizer noite, pela presença do fantástico, ou deverei dizer do passado, é bastante irreal. Quando penso neste dia parece-me mais um sonho que uma caminhada. Poderia descrevê-lo como o primeiro, mas vou fazê-lo como a segunda.

O segundo dia a caminhar na trajetória ecliptíca, com o horizonte a prolongar-se, a cada passo, um pouco mais para lá, conjuntamente com a mescla de entusiasmo e cansaço que nos possuía, deve ter criado em nós um torpor gerador de visões. Era dia e, por obra do que James alega ter sido um eclipse, vez-se noite. Já segundo Eveline tudo se deveu a James, no seu deambular, se ter entreposto entre ele e a crista cerrada. Não sou capaz de concordar com um ou discordar do outro, nem de distinguir com clareza o que cada um viu, ou supôs ver, pelo que não me irei preocupar com isso.

Houve sim um momento em que as pedras sobre as quais pensávamos caminhar se revelaram serem pequenos corpos com uma desproporcionada cabeça. Eram graníticos, polidas de lábios grossos e olhos sem fundo. Foi então que deixámos de ouvir os nossos passos e das cabeças saíram sons incompreensíveis. E contudo, aos poucos, conforme continuámos a caminhar, os pés começaram a encontrar sentidos nesses sons.

Depois, reparámos em gigantescas figuras de pedra que marcavam o caminho. Silenciosas, de longos braços, em diferentes posturas, pareciam tocar os sons que dançávamos. Nesse momento, o receio que sentíamos consubstanciou-se nos passos a que começámos a dar nomes. Um, a que chamámos aproximação, era feito de pequenos avanços e recuos, num outro, a que demos o nome de descida, o corpo atirava-se na direção da pendente mas não saía do lugar. No ponto, quedávamos-nos a ver Eveline rodar sobre nós, já na espiral tínhamos que a suster enquanto ela girava.

Suspeitei que estes passos formavam uma língua. A isso não é de todo estranho o ter verificado que cada um dançava os passos de forma diferente. Por exemplo, como era diferente a forma como eu e James executávamos a aproximação. E James era exímo nos labirintos, colocava os pés entre as cabeças no chão e subitamente desaparecia entre as figuras de pedra, reaparecendo depois, mais à frente, ou atrás. Ah... e como era Eveline graciosa em linhas e arcos.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Dia 12 - Trajetória eclíptica

Após termos estado no ponto resolvemos circundar a montanha para alcançar o outro lado, aquele que tínhamos observado. Seguimos assim ao longo da encosta, com a presença constante da inexpugnável crista de pedras do topo.

Os nossos passos, embora aparentemente enérgicos e determinados de chegar, eram marcados por um indisfarçável deambular. Seguíamos em frente com a rapidez de quem está preso por uma corda que nos segura, mas que por vezes fica lassa e nos dá a sensação de caminhar no vazio.

Eveline seguia agora visivelmente à frente. O caminho que percorríamos não estava marcado, guiávamos-nos pela crista, procurando manter a distância relativamente a ela, e pelo horizonte da encosta que encurvava lentamente. Naquele caminho inventado, os pés resvalavam à procura de apoio e tentávamos nos próximos passos restabelecer a distância ao topo.

A conversa entre James e Eveline era entrecortada pelo vacilar da caminhada.

- Quanto faltará...
- Talvez depois daquela rocha já vejamos...
- O outro lado.
- Sim, talvez.
- Fiquei surpreendida...
- Com o quê?
- Com a paisagem do outro lado.
- Sim, também não estava à espera.
- Já se veem os cumes.
- Há um grande desnível até ao desfiladeiro.
- Já dali se consegue ver como são perfeitos.
- Lá a floresta é muito densa.
- Ainda têm alguma neve.
- Seria por não haver sol que o verde era tão escuro...
- É magnífico!
- Sim, é!

domingo, 12 de agosto de 2012

Dia 11 - Ponto

Hoje, após mais um dia a subir, chegámos ao ponto. Não é fácil descrever um ponto. A única forma de o fazer é dizendo como nos aproximámos dele, que forma tomou perante os nossos olhos, e depois, o que vimos e como nos sentimos quando lá estivemos.

Estes dois dias a subir foram dirigidos para esse ponto. A subida foi feita pela encosta nordeste. Embora procurássemos atingir o ponto, fomos-nos entretendo a observar a paisagem lá me baixo. Mas isso também contribuiu para construir uma expetativa de como ela seria o outro lado. O que se veria ao atingir o ponto? E como seria poder rodar a cabeça e trocar os olhos entre as duas paisagens? Como é que essas duas imagens se encontrariam no cérebro, nesse ponto?

A subida não foi fácil e estávamos cansados como finalmente vimos o ponto. A reação imediata foi lançarmos-nos para ele, mas o acesso não era fácil e acabámos a acotovelarmos-nos, sem maldade, sem conseguir avançar. E aquele ponto era o único que nos permitiria ver o lado sudoeste, o restante cume era um escarpado fio de navalha. Mesmo o acesso a uma pessoa só não era fácil, Eveline desequilibrou-se e só não caiu pois James a segurou.

E agora que já lá estivemos, o que se vê naquele ponto, depois da canseira da subida? Há efetivamente duas paisagens que ali se encontram, cortadas por um risco de pedras aguçadas. Mas é impossível descrevê-las com precisão, pois apenas lá esteve um de cada vez, e quem pode assegurar que não fomos traídos por um piscar de olhos ao rodar da cabeça ou devido a um desfasamento entre o ponto no cérebro e o ponto sob os pés. Sim, partilhámos depois essas experiências singulares, mas quem pode assegurar que uma vez de volta não efabulávamos já sobre o ponto.

sábado, 11 de agosto de 2012

Dia 10 - Espiral

O dia foi a subir. Primeiro por uma encosta suave mas assim que nos aproximámos do núcleo central o caminho transformou-se numa íngreme subida a dar voltas em caracol. Estamos constantemente a reencontrarmos-nos, ainda que com um ou dois metros de altura de diferença. Eveline vai no meio e conta como resolveu fazer esta viagem.

- Um dia surgiu uma possibilidade de tirar umas férias de dois meses. Sempre tinha sonhado vir aqui e procurei na internet.
- Encontrei muita informação sobre os percursos, com fotografias e descrições de pessoas que cá vieram.
- Tudo o que vi deixou-me entusiasmada. Falei com uma amiga que já cá tinha estado.
- Ela disse-me que este sítio era maravilhoso, mas que Agosto não seria a melhor época.
- Mas disse-lhe que apenas poderia fazer tirar férias em Agosto.
- Ela disse-me porque não tentava tirar mais tarde.
- Eu disse-lhe que poderia tentar mas que era difícil.
- Ela disse-me para eu falar com o meu chefe.
- Eu disse-lhe que ele não iria autorizar, mas resolvi perguntar à minha mãe.
- A minha mãe ficou surpreendida, mas depois disse também ela teria gostado de fazer este caminho.
- Ah, fiquei tão contente por a minha mãe me dizer isso que no dia seguinte falei logo com o meu chefe.
- Ele apenas ouviu
- Não percebi se estava de acordo ou não, mas é-me sempre difícil perceber o que é que ele está a pensar.
- Disse-me que iria falar com o responsável.
- Nessa noite encontrei um amigo, o Karl, e contei-lhe
- Ficou tão entusiasmado. Disse que deveria ir mesmo.
- No dia seguinte o chefe veio falar comigo e disse que não seria possível por causa dos clientes.
- Fiquei tão revoltada. Ainda no outro dia derem isso ao Tom.
- Queixei-me à minha amiga.
- Ela disse-me que não fazia sentido nenhum.
- Passámos toda a noite a conversar sobre isto.
- Quando cheguei a casa pensei que se pedisse uma licença poderia passar seis meses a viajar por aqui.
- Falei com o meu namorado e disse-lhe que estava a pensar viajar durante seis meses.
- Ele deu-me todo o apoio.
- Perguntei-lhe porque não vinha comigo.
- Ele disse que não podia por causa do cão. Sobretudo agora que o cão estava velho.
- Eu disse-lhe que compreendia.
- Ele disse-me que se eu esperasse que o cão morresse vinha comigo.
- Eu disse-lhe que agora já não dava para esperar.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Dia 9 - James

Ao fundo, a montanha com as nuvens. De onde se encontra traça uma linha reta até ao sopé. Parece-lhe que a caminhada demorará um dia. Nunca aqui tinha estado antes, mas James está habituado a caminhar durante vários dias. Preparou-se com tudo o necessário e a mochila não está pesada.

Após três horas a caminhar faz uma paragem. Olhando para o ponto de partida e para a montanha calcula ter feito metade do caminho. Come qualquer coisa e bebe algum café. Em redor a paisagem não difere da que já percorreu.

Após um pequeno descanso recomeça o caminho. As descidas para os vales são ligeiros sobressaltos de que sai quando chega ao cimo da próxima colina, onde recupera a linha. Vai precisando de fazer poucos acertos a não ser quando inesperadamente à sua frente surge algum curso de água que tenha que circundar.

Uma nuvem começa a deixar cair pingos que obliquamente chocam com ele. A chuva não é muito forte, a não ser pela força com que o vento empurra as gotas. Não lhe parece que seja significante para o desviar do percurso delineado.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Dia 8 - Labirintos

A chegada a este porto criou alguma inquietação em James. Quando o barco atracou não havia ninguém no cais, como se fosse um lugar abandonado. Os passageiros que iam saindo desapareciam por entre as várias ruas que, como portas, se abriam para o cais. A cidade era um ermo corrido pelo vento e as casas feias, de janelas com olheiras e língua de fora, impossibilitavam imaginar qualquer aconchego. Mesmo o sol e a sua luz eram frios e cheios de poeira. Ao errar pelas ruas ia cruzando esquinas e dando com novas fileiras de casas iguais. Quando passou pelo mesmo sítio pela segunda vez entrou por uma porta para não se deixar engolir naquele labirinto.

Uma vez dentro foi avançando, abrindo portas, que lá deverão estar por causa do frio, até que chegou ao fundo de umas escadas. Não se via ninguém dentro da casa. Subiu as escadas e à direita estava uma pequena sala. Tinha um ar acolhedor, duas cadeiras de baloiço, uma mesa e um grosso tapete junto a uma lareira acesa. Deixou-se ficar numa cadeira a apanhar o calor. Com o corpo aconchegado James questionou-se porque não estaria ninguém na casa. Levantou-se e foi ao quarto ao lado que tinha duas camas e uma outra porta. Do lado de lá desta porta havia uma outra sala, parecida com a primeira, com uma escada. Ao fundo da escada estava uma ampla sala. James começou a suspeitar que a casa devia ser enorme.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Dia 7 - Linhas e arcos

Passar um dia a bordo deste cargueiro, ajeitado ao transporte de passageiros, pode tornar-se monótono. Logo cedo, no início do dia, percorro minuciosamente o barco mas percebo que não chegará para o preencher. De seguida, atiro-me à leitura de The Boarding House e, quando termino, receio não vir a encontrar a bordo nada que se relacione com este anúncio feito por uma mãe a um homem de que deverá casar com a sua filha. Para além disso, decido que desta vez não me irei socorrer de James, nem de Eveline.

Que poderá haver de anúncio neste barco? Sei que o capitão fará amanhã de manhã o anúncio da atracagem ao porto de destino. Mas essa é uma chegada anunciada. Peço auxílio a um livro de Madonas do renascimento que começo a folhear. Prende-me a atenção um quadro de Botticelli sobre a anunciação do arcanjo Gabriel a Maria. Maria, extremamente bela, estende a mão na direção da mão de Gabriel. Ambos têm as mãos abertas que não se tocam. O arcanjo Gabriel está de joelhos e podem-se identificar dois retângulos dispostos diagonalmente que marcam a distância entre Maria e Gabriel. Um retângulo é formado pelos braços estendidos e as cabeças, o outro, mais pequeno e dentro do primeiro, pelas mãos de dedos abertos, palma frente a palma. Estes dois retângulos estabelecem uma tensão na distância entre as duas figuras.

Com reduzida esperança de encontrar dentro do barco, neste dia, e no limitado tempo em que cá estou, algo do anúncio que Joyce descreve, também tenho dúvidas de vir a reconhecer alguma forma de anunciação de Botticelli. Não que não possa haver mulheres belas a bordo para representarem o seu papel, sei que o passar do tempo neste lugar fechado se encarregará que isso aconteça. Agora a complexidade, quer da estrutura narrativa de Joyce, quer da significação de Botticelli, serão difíceis de reconstruir nesta amálgama de ferro fumegante e ronronante.

Assim, retorno ao mais simples, às figuras geométricas. Não pretendendo transformar os passageiros, os quais desconheço, em personagens, prefiro ficar pelas figuras geométricas que vão formando, especialmente sempre que se encontrem junto à borda do navio, quando têm a paisagem como fundo e se torna mais fácil geometrizá-los.

Sento-me num banco no convés e observo um casal jovem. Ela forma um arco que alterna entre o concavo e o convexo na direcção dele. Ele, primeiro uma simples linha, vai transformando-se num arco cada vez mais pronunciado na direção dela. Formam por alguns instantes duas circunferências concêntricas e separam-se. Ela já lá não está e a parte superior da linha que o forma começa a girar presa pela ponta ao chão, formando um cone invertido. Aproxima-se uma mulher mais velha. É uma linha grossa e curta. Algumas pessoas que se colocam à frente não me deixam ver mais, mas Joyce também não conta.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Dia 6 - O observador de pássaros

Eveline é de baixa estatura. Os retângulos das escadas são um pouco largos para o comprimentos das pernas. Por isso, ao subir, vai fazendo crescendos com as ancas. Ao fundo das escadas, alguns homens, à espera, seguem o movimento com pequenas elipses dos olhos, mas talvez não com tanta perfeição.

O barco que nos vai levar através destes canais e, ocasionalmente, por mar aberto é um grande paralelepípedo ao qual foi colado um bico. Na cabine, onde vamos passar a noite, atropelam-se quatro camas no acesso a uma pequena janela quadrada por onde ainda se vê o local que agora abandonamos. 

No convés acumulam-se as pessoas em início de viagem. O barco começa a mover-se com o ruído dos motores a rodar no vazio da manobra e os gritos dos marinheiros, larga o cabo, puxa o cabo. O último cabo que segurava o barco é um passageiro aflito correndo sobre a água e saltando para o barco in extremis.

Os passageiros partem com os olhos no local que deixámos como se o barco fosse demasiado exíguo. Mas, aos poucos, conforme a distância aumenta, os olhares começam a desviar-se, primeiro para as margens depois à procura uns dos outros.

De entre os passageiros, há um que perscruta continuamente o horizonte. É franzino de óculos, usa uma barba rala, e encontra-se sempre acompanhado de uns potentes binóculos. É um observador de pássaros. Ficamos a saber que eles abundam nestes canais, razão pela qual aqui veio. E os pássaros vão traçando longínquas linhas no horizonte as quais ganham sentido e relevância nas explicações que vai dando sobre os seus distintos modos de voo e comportamentos. 

É simpático com uns modos delicados, e está sempre disponível a interromper a observação e emprestar os binóculos a quem queira seguir o voo das aves. À sua volta vão-se juntando passageiros, quer porque têm algum interesse por pássaros, quer porque ali está a acontecer algo. Junto a ele estão dois homens mais velhos, de cabelos grisalhos e barba desgrenhada que lhes cobre todo o rosto deixando apenas de fora uns lábios grossos e um minúsculo par de olhos esbugalhados. São muito parecidos, tenho dificuldade em os distinguir, e pelo facto de viajarem conjuntamente com o aparentemente frágil observador de pássaros, ganham uma forma de Dupond e Dupont.

Também Eveline não resiste em ir ver os pássaros. Assim que se aproxima um dos Dupond e Dupont pergunta-lhe, ?De donde eres tu?, ao que imediatamente o outro Dupond e Dupont acrescenta, Where are you from?. Eveline afasta-se sorrindo e dirige-se para a proa. Estamos a entrar em mar aberto. As ondas começam a agigantar-se e o barco vai-se transformando num paralelepípedo oblíquo que se equilibra entre estibordo e bombordo. Olhando para as ondas Eveline continua a sorrir.

domingo, 5 de agosto de 2012

Dia 5 - A descida

De Eveline, a primeira impressão não permaneceu. Enquanto caminhou connosco, no resto do percurso de ontem e durante o dia de hoje, não lhe vislumbrei no rosto cansaço ou hesitação. Antes pelo contrário, havia jovialidade e desenvoltura a andar. De nós era quem mais falava. Não que iniciasse as conversas, mas aos nossos comentários sempre acrescentava algo. Também James começou a conversar mais. Agora deixava-se ficar para trás, tendo perdido alguma daquela determinação cega que no início o guiava.

A estas transformações não será de todo estranho a alteração que ocorreu no caminho. Conforme fomos descendo a montanha começaram a suceder-se os cursos de água, por vezes com pequenas cascatas. Nestas zonas da montanha a água corre célere, mesmo que em pequena quantidade. Também a temperatura foi gradualmente aumentando ao mesmo tempo que a água, levantada pela queda e encurralada nos desfiladeiros, criava um ambiente húmido e cerrado, diferente daquele que tínhamos encontrado no topo.

E depois há um som constante. No cume de uma montanha o som é tão rarefeito como o ar, mas aqui em baixo os sons são levados nas partículas de água. O som da água mistura-se com a voz de Eveline, com o ruído das pedras que resvalam sob as nossas botas e, acima de tudo, com o silêncio todo ouvidos de James. James diz algo e depois cala-se a ouvir Eveline. Mais tarde vim a perceber que o que interessa a James não eram as respostas de Eveline, mas o conjunto de sons no qual a voz de Eveline se inscreve. Eveline deixa-se ir nesse jogo pela satisfação que lhe dá ouvir a sua voz nos ouvidos de James.

A meio da tarde chegamos a uma cascata formada por um retângulo perfeito. É feita de fios de água que caiem sem alvoroço sobre um pequeno lago, como se este tivesse sido desenhado para receber aquela corrente. No cimo do retângulo, um emaranhado de árvores forma uma boca verde de onde jorra a água. Em baixo, uma linha abre-se no lago para deixar gentilmente entrar a água. À volta tudo é verde e, devido ao sombreado do local, predominam os fetos.

Eveline senta-se a olhar para a cascata. O rosto é redondo, com os olhos negros e o nariz curto. As orelhas, pequenas, mal se notam sob um cabelo escuro e corrido. A idade que agora aparenta é o culminar da descida e da cascata. Um pequeno círculo nada em direção ao retângulo. A cabeça é engolida entre a água que lhe cai em cima e a água que se abre para a receber. Já do lado de lá da cortina de água, por entre os fios, está o rosto de Eveline que nos observa.

sábado, 4 de agosto de 2012

Dia 4 - Eveline

Hoje atravessámos uma montanha através do seu cume. O caminho, que inicialmente era largo, estreitou até mal deixar passar uma pessoa. De ambos os lados a encosta era íngreme. A única alternativa era continuar em frente. A encosta Sul era feita de pedras e penhascos que se precipitavam até muito lá abaixo. Já a encosta Sul, embora fosse igualmente abrupta, estava coberta por alguma vegetação que não revelava a natureza do solo.

Caminhávamos rápido quando vislumbramos alguém há nossa frente. Movia-se com alguma hesitação, saracoteando-se entre aqueles dois precipícios. Voltou-se quando nos pressentiu. Era de estatura baixa e tinha qualquer coisa de índio. Possuía uma daquelas belezas que desaparecem repentinamente com a idade. Isso era agora patente no seu rosto que, quando olhava para nós, cambiava entre o jovem e belo e o tosco e cansado. Chamava-se Eveline.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Dia 3 - Glaciar

James não fala muito, mas também ninguém vem aqui para falar.

De manhã faço um pequeno percurso para ver o glaciar. É uma enorme massa de gelo a desabar sobre um pequeno lago. As cores do gelo vão variando com a posição do sol, o passar de uma nuvem e o local de onde observamos. Por isso, quer estejamos parados ou nos movamos, as cores vêm ter connosco escondendo a exata forma do gelo. Mas há ali azuis, muitos azuis, e não é difícil também lá imaginar verdes. E prevalece um efeito de vidro fusco cheio de luz do lado de lá.

No lago flutuam blocos de gelo que se desprenderam e soprados pelo vento se empurram contra a margem. Alguns destes blocos estão esburacados pelo sol formando esculturas flutuantes que se derretem lentamente. Pego num desses blocos e coloco-o sobre um pedra. Alguns fios negros começam a percorrer a pedra, a torneá-la, em direção ao chão. A escultura de gelo vai dando lugar a uma escultura de pedra feita de riscos de água.

Do outro lado está James. É um vulto à beira de um penhasco virado para o glaciar. Deixa-se estar por ali, imóvel. As nuvens que vão passando pelo glaciar também passam por ele. Não parecem ser a sombra e o frio que o movem. Muda de lugar, começa a descer o penhasco, presumo que procura aproximar-se do glaciar. Tem os movimentos determinados que lhe reconheci na subida. Vai passando rapidamente de pedra em pedra, cada vez mais próximo sinto-lhe alguma ansiedade, como se tivesse a chegar tarde. Por cansaço, ou porque já não tem mais pedras à frente, estaca de novo. À sua frente o glaciar é enorme, uma onda de gelo que se me afigura o ir engolir. Uma espessa nuvem passa por aquela parte do glaciar e com a luz que me chega de outros pontos deixo de ver James. Do que ali se passará nada sei, apenas o que li algures.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Dia 2 - Ticket Birds

Nestas caminhadas os encontros sucedem-se e repetem-se. Por vezes rendemo-nos à repetição como a uma inevitabilidade e começamos a caminhar juntos, e separamos-nos quando o vento ou a chuva assim o decidem, ou a seu pretexto. Esta caminhada também não será exceção.

Aqui, no sopé da montanha, o que se nota é a ausência do vento. A montanha está mesmo em frente. Olhar para ela é um longo e pausado sim com a cabeça. Aproveito para respirar profundamente enquanto vou observando os seus recantos e voltas. Há uma sensação de liberdade resultante da alegria da desabituação do olhar.

Não estou sozinho. No acampamento há mais pessoas. Com alguns dos rostos já me cruzei antes, com outros ir-me-ei provavelmente cruzar em breve, outros não voltarei a ver. São rostos sem ruído. Aqui, num local que ainda não se possui, em que cada gesto e cada passo carece de repetição, o ruído é um luxo. Conforme começarmos a andar e formos perdendo este espanto iremos regressando às repetições e aos rituais, mas agora ainda não é assim.

Inicio a caminhada do dia. Saio sozinho em direção a Norte. O trilho está bem marcado, é fácil nos primeiros quilómetros mas depois começa e ficar mais íngreme, sendo necessária a ajuda das mãos. Gosto do escalar de movimentos amplos de braços e pernas, um pouco como subir a árvores. Do cimo de uma pedra fico-me a observar outros que também se esforçam por subir. Alguns sobem determinados, quase sem parar, enquanto noutros o cansaço transforma-se em argumentos. Param para explicar onde agarrar com a mão ou onde colocar o pé e assim a sua subida transforma-se num mapa do caminho. Um dos que sobe determinado é James. Já nos cruzámos antes. Quando chega à pedra em que estou sentado pára e acena. Em poucas palavras acertamos que partilhamos a mesma direção. Levanto-me e recomeçamos a caminhar.

James não fala muito mas tem sentido de humor. Por este caminho ouvem-se pássaros e ele sugere que também nós sejamos pássaros. Digo-lhe que não sei imitar pássaros. Diz não ser um problema e propõe que sejamos ticket birds. Retira os bilhetes de admissão no parque e mostra-me como se podem fazer vibrar entre os dedos. O som propaga-se entre as árvores e os pássaros silenciam-se surpreendidos e ficam à escuta, como talvez tenha acontecido a primeira vez que foi ouvido um homem nestas paragens.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Dia 1 - A aproximação

Ao fundo a montanha, imponente de acordo com as expetativas. Sobre ela umas massivas nuvens, negras e brancas, como uma pasta, prolongam o seu volume. Ainda não a percorri mas já muito sei sobre ela, dos seus vales e cumes, rios e glaciares, e das pedras que lhe dão o nome. É com este conhecimento que decido fazer uma aproximação. A aproximação foi calculada, será um dia de caminhada, cerca de 18 quilómetros até ao sopé.

Nestes primeiros passos há um anunciar da montanha. Dela não tiro os olhos. Do seu tamanho, que deverá ir aumentando conforme me aproximo, ganham forma os próximos 14 dias. Estes dias serão muito semelhantes, sobre as pernas e com a mochila às costas, ora a subir ou a descer, e demarcados pelo ir de um sítio a outro.

Contrariamente às expetativas, após as primeiras horas já não olho a montanha. Vou olhando o caminho e a paisagem que me rodeia. Passo por um pequeno vale pespegado de árvores, esqueléticas de um fogo, rodeadas de viçosos arbustos verdes. É este contraste que me prende a atenção. Começo por me concentrar nas árvores que, negras do fogo e brancas pelo polimento da chuva, são esculturas imponentes deixadas por aqui ficar. Mas a sua imponência está cercada por arbustos que por todo o lado rebentam, desordenados. Entre o silêncio das árvores e a bisbilhotice dos arbustos, é a segunda que agora me chama. Os arbustos falam com pesar das árvores que já foram. São comedidos, não necessitam de terminar as perguntas pois as respostas são logo dadas por ligeiros acenares de folhas. Entretanto, o vento que começa a levantar-se transforma a conversa em sussurros de concordância que percorrem o vale. Já não há perguntas nem respostas, apenas folhas que se agitam na mesma direção. Deixam-se adormecer nesta harmonia. Fico a saber pouco das árvores.

Volto a concentrar-me na montanha que continua lá à frente. O vento que fazia sussurrar as folhas aumenta conforme vou caminhando. Vou-me vergando a esse vento e por vezes tenho que parar para não retroceder. Nestes terrenos enlameados, a lama acumula-se nas botas em diversas camadas que secam rapidamente com o vento antes de se voltarem a encharcar numa poça. Com as pernas curvadas, bamboleio-me ao andar. O peito arqueia para a frente e a mochila fica quase na horizontal sobre as costas. A montanha torna-se invisível quanto mais me empurra para trás.