quinta-feira, 30 de julho de 2015

Meta-bicho

Quem é este bicho que escreve sobre os bichos? Bom, não é um, são vários. Cada um deles é como um senhor Nicolau, que com a sua lupa observa ao pormenor os bichos, cataloga-os e cristaliza-os com formol dentro de um frasco. Desta forma, o bicho e a sua descrição constituem uma perfeita simetria. A partir do bicho cristalizado chega-se à sua descrição e desta de volta ao bicho, e assim sucessivamente como dois espelhos frente a frente.

Nestas sucessivas transformações, o bicho e a sua descrição vão sofrendo ligeiras mutações. Em cada instante, nos espelhos surgem um senhor Nicolau e uma descrição, diferindo ligeiramente. Um senhor Nicolau dentro de um frasco, uma descrição dentro de um livro. E os espelhos continuam a fazer o seu trabalho.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Sexagésimo dia

Agora que contornámos o sexagésimo nono dia, ganhámos a paz para a questão da sexagésima: Porque não faz fruto a palavra de Deus?

Prega o Pregador que é por culpa dos Pregadores, ficando, escolasticamente desculpados Deus e os Homens. Sem dúvida uma construção barroca, a conceção do fruto pela exaustiva repetição da sua afirmação e da sua negação. É isso a Pregação.

Mas não deixa de me vir à memória outros dias, bem mais distantes que este, que aconteceu algures em 1655, dias da lagarta e da borboleta. Apenas necessito de fazer correspondências, construir as alegorias e ainda assim fico-me só pelo Pregador e pela sua Pregação. Também aí nos questionámos entre a lagarta e a borboleta, o ovo e a galinha. Cada um culpando o anterior pela sua existência. Cada um construindo-se à custa do outro, afirmando-se negando-o e abrindo a ala à sua posterior negação. Cada um igual ao anterior para conseguir justificar a pequena diferença. Numa relação infindável de ovos e galinhas, de lagartas e borboletas, colocados numa gigantesca fila de Pregadores e Pregações. Como o fruto e a palavra de Deus.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Cujo nome já não recordo

Uma mulher, cujo nome já não recordo...

E não recordo de facto, embora conceda que fica bem começar assim. E ainda melhor fica admitir que se reconhece. Bom, talvez recorde um nome como se recorda uma sequência de letras, mas, sendo o que escrevo o que é,  o significado dessa sequência é irrelevante.

E dizia, uma mulher, cujo nome já não recordo, sentou-se à minha frente... Não é nova, mas por vezes tem lapsos de juventude. Então nota-se frescura e ficamos na dúvida se a vemos como é ou como era.

Mas não nos dispersemos pois isso nada acrescenta.

Esta mulher, cujo nome já não recordo, senta-se à minha frente e começa a falar sobre a fidelidade. Vai contando como aceitou ser fiel sabendo que marido não o era, e assim viveu anos numa espécie de felicidade consigo mesma. 

Deixo-me absorver pela sinceridade com que fala, e acho que consigo visualizar os lapsos de juventude a percorrerem-lhe a cara como ondas. Mas isso sou eu.

Esta mulher com um nome que já não me recorda, conta como ajudou a prender um homem, seduzindo-o. Explica como foi perigoso, como construiu uma encenação, uma teia de mentira para fazer tropeçar o lado bom de um homem mau. 

Percebo a determinação desta mulher, mas já não sigo mais o que diz. Ausento-me.

Dou comigo a imaginar dois espelhos simétricos, num o marido seduz, noutro seduz ela. São a mais perfeita cópia um do outro, mas apenas num há traição. No outro há algo mais estranho e difuso.

domingo, 26 de julho de 2015

Gallus Prostratus

— Isto agora anda tudo trocado, homens com homens, mulheres com mulheres. Nem quero saber, pois comigo não, não, quantas vezes as prostrei eu, belas mulheres, cabelos negros, ruivos, louros, haréns, ou não me chame eu Feliciano. Falava-lhes ao ouvido e elas quietas e mudas, já sabiam ao que vinha, mediam-me, não perdiam pita do que dizia. O ouvido de uma era a boca de um altifalante, as palavras propagavam-se e eram às dezenas os pares de olhos que me auscultavam quando passava. O sucesso é assim, sempre a subir, e um homem tem que se aguentar, não é para todos. Nunca deixei nenhuma triste, que um homem deve ser feito de princípios. Claro que outros achavam que eram mais que eu, muito mal disseram, que não fazia, que cantava de galo, que eu não as cuidava, que a assistência não era como devia. Apontavam falhas aqui e ali, pormenores, qualquer coisa servia, mas o que era? Era inveja... Sim invejas, que um homem deve seguir em frente, de cabeça erguida, que a inveja rasteja e não se deve pôr-lhe os olhos em cima. Por isso onde tu chegavas Feliciano era uma calma, harmonia sobre harmonia, uma Pax Romana, que para isso servem armas. Ai Feliciano, e agora aqui prostrado e esses miúdos passam por ti e fingem que não te veem, devem pensar que sabem, que cantam bem... Próstatas novas.

In da Memória da Areia dos Bichos

sábado, 25 de julho de 2015

Sexagésimo nono dia

Há algo de incontornável no sexagésimo nono dia, mesmo que se contorne. Isso sente-se logo ao esboçar do quinquagésimo segundo. Este, de identidade própria, tem apenas o aproximar do outro.

Não é sequer um dia menor do ano da areia. Prenhe das costumeiras repetições, gira sobre si próprio sem nada mudar, como num filme pornográfico em que continuamente se muda de posição para continuar a fazer exatamente o mesmo, num grau zero do Kamasutra.

Nos biliões de imagens já filmadas, e nos biliões por filmar, encontra-se um apagar, uma indolência e uma ausência de vaidade, a qual sendo o mais ténue dos pecados é também o único, pois todos os restantes necessitam deste primeiro passo.

Outros dirão que não é vaidade, é vontade, está em todas as coisas, e nem sequer é pecado. Pertence, sim, à eterna ordem natural do manducar, da irrevogabilidade da vontade na alteração das formas.

Sim, é verdade que em alguns atores, principiantes, se nota alguma luz, mas isso é porque este bicho tem uma abissal vontade de sonhar. Contudo, a indolência é rainha num mundo onde na mais completa ausência de pecado se procede à sua mais acabada representação.

Um mundo como indolência e representação que Schopenhauer terá ignorado.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Rio

Naquele rio, daquele país,
por vezes corre sangue.
Mas das suas margens
não há relatos de massacres,
ou de outros sacrifícios.
Sente-se sim nele uma sofreguidão,
um pavor de deixar de correr.

domingo, 19 de julho de 2015

O do desassossego

Muitos têm definido o homem, e em geral o têm definido em contraste com os bichos. Por isso, nas definições do homem, é frequente o uso da frase "o homem é um bicho..." e um adjectivo, ou "o homem é um bicho que..." e diz-se o quê, ou "o homem é um meta-bicho" e aí já não se diz mais nada.

O homem é então um meta-bicho, um bicho que se observa a si mesmo, ou melhor, um meta-bicho que observa um bicho, pois é o ato de observar que acrescenta o meta ao bicho. É fundamental realçar que o bicho e o meta-bicho têm que ser necessariamente o mesmo. A observação de um outro bicho não faz do bicho meta-bicho, muito antes pelo contrário, bichifica-o, se me é permitido dizê-lo, pois a comparação tem por objetivo último a competição, a procura da vantagem. Já a auto-observação de um bicho carece de utilidade, dado ser uma verdade insofismável a impossibilidade de qualquer ser, mesmo um bicho, procurar vantagem de si próprio. Acho que fica assim claro que quando um bicho se observa a si próprio não pode ser um bicho, sendo certamente um meta-bicho.

Mas surge agora uma aparente incoerência que não devemos ignorar, o meta-bicho, ao observar-se a si próprio não pode estar a observar um bicho, está a observar um meta-bicho. Isso leva-nos a ter de redefinir meta-bicho como o meta-bicho que observa o meta-bicho. Dirão os leitores que isso é impossível, dado que esta definição contradiz a anterior, mas não é bem assim como irei procurar explicar. É frequente o meta-bicho observar, um pouco embevecido, naturalmente, o meta-bicho. Diz-se, dar-se ares de meta-bicho, comparar-se com os bichos e ser-lhe clara a diferença, a distância. Para isso nem sequer necessito de referir a observação que Pessoa faz do camponês de Loures, que todos sabemos não existir e ser uma mera efabulação de Pessoa para melhor se observar. Também eu já caí nessa armadilha, eu que sou pouco na ordem dos que pensam, e nada se me comparar a Pessoa, também já me julguei um meta-bicho da cidade que ouvia os Joys Divisions de Manchester e observar com alguma displicência os bichos de minha aldeia a vibrarem com os Marcos Paulos não sei donde, e nessa observação não havia uma comparação com eles, pois éramos de diferentes ordens de grandeza, mas sim uma comparação com o meta-bicho que eu próprio era. Pois, como já tinha referido, o meta-bicho adora observar-se a si próprio.

Mas ainda não é tudo. Nessa minha observação fui-me apercebendo da ausência de distância nas emoções, entre Manchester, a minha cidade e a minha aldeia. Antes pelo contrário, por vezes até senti inveja dos bichos da minha aldeia, da forma simples como vibravam, sem demasiadas articulações. Por falta de disciplina dei comigo a vestir-me das suas emoções e a observar o meta-bicho que eu era. Desta forma percebi muitas coisas que não tinha percebido antes, desconheci-me. E o que é isto senão o bicho a observar o meta-bicho. Sou obrigado a concluir, portanto, que o meta-bicho só pode ser o bicho que observa o meta-bicho.

Levanto-me indeciso sobre se bebo um chá, se vou à janela observar a noite ou se continuo sentado junto ao aquecedor. Não recordo qual é a minha decisão. Penso sobre o bicho e não sei se há alguma réstia de ironia no que acabo de escrever, mas rendo-me, o meta-bicho é o bicho do desassossego.

In da Memória da Areia dos Bichos

quinta-feira, 16 de julho de 2015

O primeiro dia do ano da areia

Quando olhamos para a frente verificamos que o número de dias é finito. São exatamente 365. Isso traz-nos alguma serenidade. Sabemos que o de hoje foi o primeiro. Está quase terminado, amanhã será o segundo, e então poderemos recordar o primeiro, percebê-lo com distinção, como ele realmente foi. E não só no segundo dia, mas em todos os outros o poderemos trazer à memória, a ele e a qualquer outro que já tenha passado. Quanto aos dias que faltam nada poderemos fazer, para esses é necessário esperar que aconteçam antes de poderem ser recordados.

Tudo isto é tão óbvio que nem sequer seria digno de nota e não mereceria estas parcas palavras se não fosse um outro facto que entretanto constatei. Este ano é, de acordo com a astronomia Baktun, o ano da areia, aquele que terá 365 dias mas esses dias serão infinitos.

Ao princípio fiquei surpreendido e não queria acreditar. Como é possível que tenha 365 dias e eles sejam infinitos? Claro que poderia esperar pelo dia de amanhã, ver se o dia de hoje seria o dia de hoje, se ao recordá-lo ele seria exatamente como aconteceu. Se assim fosse, se não vislumbrar nele um qualquer outro primeiro dia, então teria a certeza que este dia era único e ocuparia o seu lugar como sendo o primeiro. Mais ainda, se cada dia impedir outro de usurpar o seu lugar teremos efetivamente 365 dias e eles não poderão ser infinitos.

Contudo, a dúvida levantada impede-me de seguir esta estratégia. E se for verdade? Então não posso esperar pois se o fizer, e resta menos de uma hora para o primeiro dia acabar, se os dias forem infinitos, irei perder a memória deste para poder recordar o outro. Confesso que também não sei o que possa fazer se chegar à conclusão que é verdade, mas ainda assim vou tentar conjeturar como é possível que 365 dias sejam infinitos e depois pensarei como impedir o esvaziamento da memória deste dia.

Ocorre-me que talvez eles sejam mesmo apenas 365 mas que estejam entrelaçados. Que a memória de um dia seja amalgamada com as memórias dos restantes dias. Ou que de facto os dias não possam ser recordados, mas que atribuamos as memórias aos dias para estas serem mais verosímeis. Que quando julgamos recordar um dia estejamos sim a inventá-lo, a juntar um conjunto de memórias e a dar-lhe um nome de dia.

Dizemos com vaidade, este foi o primeiro dia. Mesmo quando voltamos a recordar essas mesmas memórias, aquelas que atribuímos àquele dia, elas vão-se amalgamar com outras memórias, e lá teremos outro primeiro dia.

Se esta conjetura for verdadeira então é monstruoso, pois o dia de amanhã também poderá ser construído com memórias, como um qualquer outro dia que passou. Desta forma, hoje, agora, neste primeiro dia deste ano os 365 dias são infinitos e já todos aconteceram.

Olho para o relógio, são 23:59 e, mais por instinto do que por convicção, procuro as memórias deste dia.

In da Memória da Areia dos Bichos

terça-feira, 14 de julho de 2015

Fogo de Artifício

Caminham pela praia de noite e vai dizendo que aquele firmamento é o resultado de uma grande explosão. Uma explosão que ainda não acabou e de que vemos, sobrepostos, o presente e o passado.

Vai dizendo que também nós somos fragmentos dessa explosão, talvez dos mais efémeros, e que ainda assim a celebramos de uma forma ainda mais efémera, com fogo de artifício.

Ela olha para ele, sorri, e pensa - fogo de artifício.

terça-feira, 7 de julho de 2015

Etoxiuq

Agora que vou vendo House of Cards e ouço as referências aos apelos ao primado da realidade vem-me à memória

Etoxiuq

Foi construindo a sua teia usando como fio as pequenezes, e as grandezas, dos homens. Fê-lo com tal precisão e minúcia que não se percebia onde acabavam umas e começavam as outras. E como a matéria de que era feita era a mesma que capturava foi ganhando o tamanho de todas as coisas.

Ao sentir aproximar-se o fim resolveu dar uma nome à sua obra. Chamou-lhe Etoxiuq e com alguma vaidade disse que era como o Mundo. Já no seu tempo alguns se atreveram a discordar dele. Diz-se que Cervantes sugeriu que poderia não ser. Para sustentar essa impressão referiu um certo cavaleiro da Mancha que afirmava não ser uma teia, mas sim um moinho, e que eram vários.

Não obstante de tudo isto ter sido informado, com a vertigem do fim, persistiu em teimar.

domingo, 5 de julho de 2015

Cairo

Agora que recebo a notícia que num bote de borracha cheio de miséria não cabem dois Deuses vem-me à memória

Cairo

Acredito nas constantes, nas repetições. E de tal forma acredito que as procuro mesmo quando lá não estão. Assim, não acredito em Deus muito para além desta débil teoria unificadora com que desejo ver o mundo. Todavia quero acreditar que a paz é a mesma.

Recordo passear no Cairo e entrar por alguns bairros com a intenção de ver como é o mundo sem esfinges nem pirâmides. Num lugar entre casas castanhas e baixas, um garoto diz-me, na língua possível de quem não fala a mesma língua, que um homem santo quer falar comigo.

Entro por uma porta. Lá dentro é fresco e escuro. Quando os olhos se habituam vejo ao fundo um homem que sorri. Com a ajuda do débil intérprete começa a falar de Deus. Diz que o meu Deus e o Deus dele não são assim tão diferentes. Que é bom ambos acreditarmos. Naquele tempo ainda não tinha pensado nas constantes e sou acometido de sinceridade. Digo-lhe, com pena, que não acredito em Deus.

Tenho à minha frente um rosto hirto com um braço estendido que me aponta a luz da rua. De novo cá fora, debaixo do sol impiedoso, continuo a caminhar por entre um amarelo acastanhado que tudo cobre.