sábado, 30 de novembro de 2019

O centro do labirinto está na cozinha

E a Joaninha quedou-se um instante a olhar para a mãe, grande, de braços esticados, segurando as paredes da cozinha, e imaginou um quadrado em que dois dos lados caiem paralelos das mãos em direção ao chão, e os outros passam tangentes à sua cabeça e aos seus pés. De seguida, viu todos os quadrados que fazem a cozinha, com a mãe em todos eles. Surpreende-se como é que um ser tão grande pode estar encarregue de uma parte tão pequena do labirinto. E depois, por isso mesmo, deu-lhe para supor que talvez o labirinto não exista, talvez seja uma invenção aqui criada. Ou melhor, pensou de novo, um disfarce, o centro do labirinto é aqui, feito à volta mãe onde, para além do quadrado, também há uma circunferência, e lá, do outro lado, no putativo centro, na sala cheia de livros onde não se matam galinhas, mas onde nas estantes há relatos de esvaimentos bem piores, de trespasses à espada, que virá a ler mais tarde, esse hipotético centro não existe, ou existe apenas porque existe a cozinha, uma cozinha falsamente humilde que zomba de nós quando nos impele para as estantes, para deitar as mãos aos livros que nos enchem a cabeça de histórias que vamos apreciar apenas porque, de facto, estivemos no pátio, vimos a galinha a passar ao sol, debicando, e depois vimo-la na cozinha, e agora quando lemos estes relatos esquecemos tudo isso por causa da sedução armada com o perfume dos livros e da madeira que os alberga, e ficamos convencidos que esses é que são os verdadeiros enredos. Atreve-se depois a supor a Joaninha, poderá haver dois centros? Um na sala e o outro na cozinha? Ainda que isso já não seja um labirinto, pelo menos como lhe foi explicado, pois quem explicou manifestou a vaidade de estar no centro. Então haveria um com origem na cozinha e saída na sala, e um outro da sala para a cozinha. Mas, seriam exatamente o mesmo labirinto, apenas com centros diferentes, ou cada um deles tem os seus próprios caminhos, as suas próprias esquinas e cantos sem saída? O que então quereria dizer que passou por quartos que pertencem ao labirinto da cozinha, e por outros que pertencem ao da sala, e andou duplamente sem saber onde andava, pensou primeiro que estava na casa grande, e depois disseram-lhe que andava era num labirinto, mas afinal, supõe agora, estava era em dois labirintos ao mesmo tempo, e o papel que tinha na mão apenas explicava um deles, por isso parecia simples, mas a mãe deve saber que são vários, por isso lhe ralhou, por isso não acreditou no que tinha na folha. E então, pergunta-se a Joaninha, segurava o senhor as paredes da sala como segura a mãe as da cozinha? O senhor segurou-se à secretária, recorda agora a Joaninha, pois só as perguntas nos conseguem fazer ver aquilo que já tínhamos visto. O senhor não forma um quadrado, é um triângulo de pernas aberta e joelhos levemente fletidos, com a mão apoiada no tampo. Um triângulo apoiado, que por muito que tente, por muito que se desdobre ao longo da sala, nunca conseguirá fazer dela sua pertença. Portanto, conclui a Joaninha, o senhor não está a segurar a sala, e por isso ela só pode existir por causa da cozinha.