Em tudo o resto era simples o António. Muito amigo de seus amigos, nas coisas que a eles diziam respeito colocava um empenho pelo qual era admirado e estimado. Eram amigos de longa data, reuniam-se com regularidade disciplinada, duas vezes por ano. Os encontros eram um reviver transmutado em abraços e palmadas nas costas. Esses afetos, ainda que empolados pela lupa do tempo, traziam-lhe uma tranquilidade, a que se encostava com a satisfação afável de quem espera por mais. E as partidas eram como as chegadas.
Foi percorrendo as coisas da vida como deve ser. António teve mulheres e filhos. A primeira deu-lhe dois. Da segunda teve mais um, como confirmação. Cumpriu as sua obrigações, fez o que tinha de fazer e não se intrometeu no que não lhe dizia respeito. Aos filhos, depois de criados, deixou-os partir com naturalidade, sem sinal de resignação.
Era da caça que ele mais gostava. Uma coisa de família. Lembrava-se do avô e do pai regressarem com as perdizes penduradas do cinto e as caçadeiras abertas. É a do pai que ainda usa. É pela sua mira que as vê passar depois de soltar o cão. Dois gatilhos. Pum, e às vezes cai uma, pum, para confirmar. Abre sempre a arma, para ver saltar os cartuxos, antes de tirar o animal da boca do cão, com o cheiro da pólvora, o sangue da perdiz e a baba alegre.
Agora está aqui encostado a esta árvore a ver o tempo passar. Parece-lhe que passa muito lentamente, e cada vez mais lentamente. Enquanto vai fechando os olhos, a planície vai-se prolongando e as árvores sobrepondo-se. E contudo, o espaço entre elas continua a aumentar. Árvores mais esparsas, planície mais longe. Sente na boca um travo a vinho. Abre as mãos para o cão lamber.
In da Memória da Areia dos Bichos
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