Muitos têm
definido o homem, e em geral o têm definido em contraste com os bichos. Por
isso, nas definições do homem, é frequente o uso da frase "o homem é um
bicho..." e um adjectivo, ou "o homem é um bicho que..." e
diz-se o quê, ou "o homem é um meta-bicho" e aí já não se diz mais
nada.
O homem é
então um meta-bicho, um bicho que se observa a si mesmo, ou melhor, um
meta-bicho que observa um bicho, pois é o ato de observar que acrescenta o meta
ao bicho. É fundamental realçar que o bicho e o meta-bicho têm que ser
necessariamente o mesmo. A observação de um outro bicho não faz do bicho
meta-bicho, muito antes pelo contrário, bichifica-o, se me é permitido dizê-lo,
pois a comparação tem por objetivo último a competição, a procura da vantagem.
Já a auto-observação de um bicho carece de utilidade, dado ser uma verdade
insofismável a impossibilidade de qualquer ser, mesmo um bicho, procurar
vantagem de si próprio. Acho que fica assim claro que quando um bicho se
observa a si próprio não pode ser um bicho, sendo certamente um meta-bicho.
Mas surge
agora uma aparente incoerência que não devemos ignorar, o meta-bicho, ao
observar-se a si próprio não pode estar a observar um bicho, está a observar um
meta-bicho. Isso leva-nos a ter de redefinir meta-bicho como o meta-bicho que
observa o meta-bicho. Dirão os leitores que isso é impossível, dado que esta definição
contradiz a anterior, mas não é bem assim como irei procurar explicar. É
frequente o meta-bicho observar, um pouco embevecido, naturalmente, o
meta-bicho. Diz-se, dar-se ares de meta-bicho, comparar-se com os bichos e
ser-lhe clara a diferença, a distância. Para isso nem sequer necessito de
referir a observação que Pessoa faz do camponês de Loures, que todos sabemos
não existir e ser uma mera efabulação de Pessoa para melhor se observar. Também
eu já caí nessa armadilha, eu que sou pouco na ordem dos que pensam, e nada se
me comparar a Pessoa, também já me julguei um meta-bicho da cidade que ouvia os
Joys Divisions de Manchester e observar com alguma displicência os bichos de
minha aldeia a vibrarem com os Marcos Paulos não sei donde, e nessa observação
não havia uma comparação com eles, pois éramos de diferentes ordens de
grandeza, mas sim uma comparação com o meta-bicho que eu próprio era. Pois,
como já tinha referido, o meta-bicho adora observar-se a si próprio.
Mas ainda
não é tudo. Nessa minha observação fui-me apercebendo da ausência de distância
nas emoções, entre Manchester, a minha cidade e a minha aldeia. Antes pelo
contrário, por vezes até senti inveja dos bichos da minha aldeia, da forma
simples como vibravam, sem demasiadas articulações. Por falta de disciplina dei
comigo a vestir-me das suas emoções e a observar o meta-bicho que eu era. Desta
forma percebi muitas coisas que não tinha percebido antes, desconheci-me. E o
que é isto senão o bicho a observar o meta-bicho. Sou obrigado a concluir,
portanto, que o meta-bicho só pode ser o bicho que observa o meta-bicho.
In da Memória da Areia dos Bichos
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