quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Quarto

Sei quando podes vir. A senhoria é muito chata. Cheia de regras e proibições. O duche, dez minutos. Nada de visitas. Mas eu sei quando podes vir. Todas as semanas, à quarta-feira, vai visitar uma tia, que ainda deve ser mais velha do que ela. Fica lá a tarde toda, e então tu podes vir. Temos a tarde toda para nós. E a velha na conversa com a outra velha. E nós os dois. Devem passar a tarde a beber chá. Devem falar de quando eram novas. Ou então de outras velhas como elas. Ah, a cama é de solteira, mas vais ver que nos ajeitamos. O colchão faz um pouco de barulho, mas àquela hora não deve estar mais ninguém, e se for preciso eu falo à Clara. Não há problemas com a Clara. A Clara é fixe. Costumo falar muito com a Clara. Fartamo-nos de rir com as coisas da senhoria. No outro dia, a Clara estava indisposta, com o período, e ela disse-lhe logo que lhe fazia um chazinho. Eh, eh, resolve tudo com um chazinho. Aquilo da cama fazer barulho deve ser de propósito. Coisas de velha, pelo menos é o que a Clara acha. A dela também range. É como um alarme que colocou e que agora a deixa em alvoroço. Colocam portas para terem medo de ser roubados, diz a Clara, que é anarquista. É muito engraçada a Clara. No outro dia a Clara começou a fazer barulho de propósito com o colchão e ela bateu à porta do quarto dela e com uma voz muito fraca, quase que sussurrava, quem está aí, quem está aí, diz a Clara que quando lhe abriu a porta estava branca como cal, parecia que lhe dava um chilique. O que rimos as duas. Mas a velha é desconfiada. No dia seguinte, quando estávamos a tomar o pequeno-almoço, perguntou à Clara, a menina Clara colocou-se de propósito aos saltos em cima do colchão? Havias de ver como disse aquilo e como olhava para ela, a ver se se descosia. Em nova devia ser fresca. Mas a Clara só disse que teve uma quebra de tensão e se deixou cair em cima da cama. E agora há uma nova proibição, é proibido andar em pé em cima da cama. A Clara disse que esta história é uma ode ao anarquismo, até já está a pensar escrever um artigo lá para o jornal deles. Bom, e depois não prestes muita atenção ao quarto. Não tem muita luz. Mas na opinião da senhoria é um dos melhores que se pode encontrar na Almirante Reis. Para estudar não é grande coisa, muitas vezes tenho que ir para a sala, ou ficar na biblioteca da escola. Mas para se estar eu até gosto. Depois vês. Tem uma luz difusa, que chega através da marquise, com umas cores prateadas, cheias das sombras dos vidros martelados. Fico em cima da cama a vê-las andar pelas paredes e a pensar em ti. E depois lá vem ela bater à porta a dizer, menina Ivone, menina Ivone, não fique para aí fechada no quarto, venha para a sala. No melhor quarto da Almirante Reis. Coitada, gosta de companhia, se não fôssemos nós passava o dia sozinha, que a gata já faz pouca companhia, tem quinze anos e passa o tempo enroscada. Mas que interessa isso. Que bom. Na quarta-feira podes vir. Não vai haver problema, podemos passar a tarde toda no meu quarto, e eu falo com a Clara e vai ser como se o apartamento fosse nosso.

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