No quinquagésimo terceiro dia foi descoberto, entre
uns velhos pertences de Mark Twain, uma solta folha de papel onde ombreavam as
seguintes palavras, se emprenhares pelos ouvidos vais ter de criar a criança.
Os peritos questionam-se sobre se a frase é da autoria de Mark Twain. O estilo
é, talvez não o seja o verbo, mas é a sua letra direita e corrida. Mais abaixo,
numa letra mais fugidia, com uma tinta que os mesmos peritos certificam ser outra,
encontra-se escrito, e nunca saberás quem é o pai.
Intriga-me toda esta ocorrência. Sempre considerei
Twain um anti-Pessoa, pois um escreve a vida e o outro o pensamento. Um faz-nos
pensar sobre a vida, o outro diz-nos que não pensar é o seu fim último.
Intriga-me, pois ouvir é não ver e depois imaginar. Um pouco como ler. Pessoa
era perito em imaginar a vida, com uma precisão só possível a quem não a vive.
Já Twain é o oposto.
Intriga-me, pois parece que foi escrito em duas
fases, primeiro o se e depois o e. E vamos ignorar aqueles
que irão com certeza alegar que primeiro terá sido escrito o e e depois
o se. Eu poderia ser um deles, mas ignoremo-los.
Intriga-me porque teria Twain necessitado de
acentuar algo tão evidente na promiscuidade de bocas e ouvidos. Porque se daria
a esse trabalho? Ter-lhe-ia apenas ocorrido depois, ou acrescentou-o como um
recalco a algum incrédulo? E se assim foi, porque o fez numa folha de papel
destinada a ser lida um século mais tarde? Porque se escreve uma resposta para
ninguém ler, para se guardar entre uns pertences? Intriga-me.
Por isso construo a minha própria teoria. Não foi
Twain que escreveu o que Twain escreveu. Foi um heterónimo de Pessoa, Twain
claro. Mas dirão que foi encontrado nos pertences de Mark Twain, com a letra de
Twain. Mas o que são os pertences, e a letra, de um homem morto? Ainda assim
uma teoria absurda, mas muito antes, um outro Pregador, Vieira, escreveu, se
Cristo toma a Escritura para se defender do Diabo, como toma o Diabo a
Escritura para tentar a Cristo?
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