terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Inferno

Nada há mais indicador da pobreza da mente do que não saber fazer espírito senão com pessoas.
Livro do Desassossego, Fernando Pessoa

Num dos seus contos, Italo Calvino descreve um planeta terra vazio onde os mais variados objetos vão caindo do céu. Numa parábola à criação, os seus dois únicos habitantes vão zelosamente juntando o que encontram - fogões, vasos, árvores, … -  e meticulosamente arrumando cada coisa no seu lugar. Também eu não resisto à tentação a ir encaixando o que vou encontrando.

Agora que se aproxima do fim o meu terceiro livro quero abraçar algo mais ambicioso, uma narrativa sobre o Inferno. Para isso tenho vindo a juntar pequenos apontamentos que aqui apresento como se uma ordem tivessem.

Se um início houvesse, diria que ocorreu à mais de três anos, quando me foi anunciado o Inferno. Daí a imaginar todas as possíveis combinações de Inferno foi um passo. Depois, foi o tempo de perceber da sua inevitabilidade. Então juntei-lhe a citação que ouvi há dias de Alberto Caeiro: sou do tamanho daquilo que vejo. Desta conjugação entre o que aconteceu há três anos e o que ouvi há dias nasceu a intenção de escrever um livro sobre o Inferno.

Contudo, não basta ter os olhos abertos e observar o que nos cerca, é necessário ter uma estrutura. O primeiro passo foi a procura de um condenado ao Inferno. Encontrei La Gloire num livro de Boris Vian lido na adolescência. Condenado a recolher cadáveres com os dentes do fundo rio em troca do ouro dos habitantes, La Gloire encarna um Inferno aquático sem fogo.

Mas para haver um Inferno tem que haver um conceito de mal absoluto. Para isso procurei o conceito de bem absoluto no trabalho de Paul Ricouer sobre a hermenêutica do testemunho. De acordo com Ricoeur existe uma metafísica relativamente ao testemunho que vai para além da experiência e da ideia do bem. Acorreu-me então que o livro poderia ser feito apenas de testemunhos sobre o condenado para daí surgir uma metafísica do mal.

A seguinte questão coloca-se sobre quais são os testemunhos que contêm essa capacidade metafísica de geração da consciência do mal absoluto. Lembrei-me a seleção feitas dos Evangelhos e a sua depuração dos apócrifos. Assim, uma narrativa sobre o Inferno poderia descrever o processo de seleção dos testemunhos verdadeiros, aqueles que consubstanciam e emanam o mal, na perspetiva de uma das pessoas incumbida dessa seleção. Focar-se-ia o livro em uma única pessoa e na sua (re)leitura dos testemunhos, as dúvidas que se lhe levantam, e as estratégias e modelos mentais subjacentes à seleção que vai construindo.

Finalmente, recentemente li a frase de Fernando Pessoa, com que encabeço este texto: Nada há mais indicador da pobreza da mente do que não saber fazer espírito senão com pessoas. Creio haver alguma contradição entre a pobreza do espírito feito apenas com pessoas e a metafísica do testemunho, mas aceitei este como um desafio que poderá enriquecer o livro. Contudo, para poder continuar gostaria de obter um extenso conjunto de testemunhos do mal sobre os quais possa trabalhar. Para isso peço aos meus leitores que achem que têm histórias que valha a pena contar que me enviem. Estou particularmente interessado em testemunhos que sejam construídos sobre testemunhos, em que não tenha havido contacto direto com a origem do mal, mas que possam conter essa experiência metafísica emergente da interação com um testemunho.

Agradeço todas as contribuições que me possam enviar para Antonio.Rito.Silva@gmail.com. Obrigado.


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