sábado, 1 de fevereiro de 2014

Crónicas do Inferno

Uma colega perguntava-me se não me incomodava as pessoas poderem associar o que escrevo no blog e o que faço como Professor do Técnico. Como se o receio de quem pergunta pudesse passar para quem responde. Recordei a fábula de Esopo sobre o velho, o menino e o burro. Realmente não há muito a recear, se quiserem falar, falarão, quer vamos montados no burro ou com o burro às costas. Mas esta é a visão mais simples.

Mais interessante é a possibilidade para se construir uma história invertida. A geração de atos não intencionais, quase aleatórios, seguida da observação da sua interpretação pelos outros. Como que se um escritor resolvesse escrever uma história gerando um conjunto fortuito de atos, não estabelecendo a priori, ou intencionalmente, qualquer relações entre eles, sendo depois um cronista.

Esta escrita na vida seguida da escrita da crónica é provavelmente a única possibilidade de escrita. Aqui exacerbada, através da interpretação intermédia dos outros, ela acontece sempre que um escritor acaba de escrever uma palavra e a consciência espontânea que ela lhe gera no contexto em que é colocada. Veja-se acima a palavra invertida, que usei para referir a geração de uma história de forma inversa, a crónica (história) das interpretações em vez de uma história para ser interpretada, logo suscitou em mim a consciência que a palavra pode ter outra interpretação. A decisão de a deixar lá ficar é a possibilidade de gerar uma história invertida, e tudo isso acontece numa fração de segundos sem a mediação dos outros. Agora é só ficar à escuta.

Claro que isto me leva à crónica dos testemunho, à crónica do inferno. A história dos testemunhos como construção coerente de uma narrativa. Mas que coerência poderá haver numa narrativa construída sobre atos fortuitos?

Esta foi a minha questão inicial. O edifício narrativo facilmente ruirá ao acaso, pensei. Curiosamente não é assim por duas razões. A primeira é que a narrativa se constrói sobre uma ideia, podemos chamar-se uma verdade, a qual permite filtrar os atos à luz da sua coerência. A escrita desta mensagem e a sua não escrita, e ambas ainda são possíveis pois ainda não publiquei, serão interpretadas à mesma luz. A segunda razão tem a ver com o pendor do poder para rescrever a história. Ou seja, quando a dissemelhança de situações começa a ser insuportável para a coerência narrativa surge a necessidade de rescrever. A reescrita pode ser bruta, simplesmente colocando e retirando da fotografia, criando atos coerentes, ou subtil, através de retoques nos gradientes da memória.

Para as Crónicas do Inferno procuro as formas e tonalidades da interpretação e da reescrita nos testemunhos. Cada interpretação, cada reescrita, incluindo a sua crónica, é obra do escritor à procura da sua coerência narrativa. Já a incoerência do todo é obra de Deus.

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